Comunidade negra possui poucas referências na cidade: conheça um projeto que amplia a cena cultural
Por Cássia Paim
A história de Blumenau, sem considerar a presença indígena, começa em 1850, com a chegada de colonizador Hermann Bruno Otto Blumenau. Nas entrelinhas dessa narrativa, há outra presença que ajudou a construir a cidade e que, muitas vezes, acaba esquecida: a população negra. É o que afirma o pesquisador e fundador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab/Furb), Carlos Alberto Silva da Silva, articulador da cultura e do movimento negro da cidade.
Embora a Lei Eusébio de Queirós, promulgada em 4 de setembro de 1850, dois dias após a chegada de Hermann Blumenau à região, tenha proibido o tráfico de africanos escravizados para o Brasil, isso não significou o fim da escravidão. Na prática, pessoas negras escravizadas continuaram sendo utilizadas como mão de obra em diversas partes do país, inclusive no Vale do Itajaí.
“Esta população, aos poucos, vai aumentando na região do Vale e em Blumenau. Essa mão de obra é utilizada para o desenvolvimento econômico, ao trabalhar a terra, ao trabalhar na agricultura, ao desenvolver os afazeres da lida industrial depois também. A presença negra, vem se desenvolvendo a partir daí e depois, com a chegada da industrialização, a população negra, num número muito pequeno nessa colônia, vai aumentando aos poucos, mas não o suficiente para ter uma comunidade significativa”, explica.
Atualmente, conforme o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 20,8% dos moradores de Blumenau se identificam como pretos ou pardos. A presença negra no município é vista em sua maioria nas regiões periféricas e distantes, como no bairro Fortaleza. De acordo com Carlos, essa parte da sociedade e suas tradições continua sendo pouco notada. “As manifestações culturais vão se dar por intermédio da organização das escolas de samba, da organização das rodas de samba, mas sempre muito invisível, porque a cultura germânica, hegemônica, ela invisibiliza as demais culturas, sobretudo a cultura negra”, diz.
O Papel do Neab
O Neab da Furb, criado em 2014, surgiu com a proposta de assessorar a universidade na implementação da Lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira. O núcleo contribui no ensino, pesquisa, extensão e cultura. No entanto, o movimento ainda é tímido fora da universidade. “O Neab ainda não consegue fazer um bom diálogo fora do espaço acadêmico. Aliás, é algo que o Neab precisa se articular melhor. Ele vem enfrentando muitas dificuldades nos últimos anos, então isso é algo que precisa ser pensado um pouco melhor”, aponta Carlos.
Para ele, há risco de esvaziamento da cultura preta na cidade. “Em Blumenau, nós temos um problema de articulação dos movimentos negros, de articulação desse movimento dentro dos partidos políticos e dentro da própria sociedade. Então esse é um grande problema, esse diálogo entre os coletivos negros de Blumenau não está acontecendo. Os movimentos estão desarticulados; os partidos políticos não pautam a questão racial; e as lideranças não conseguiram criar renovação”, afirma.
Da ausência à criação de espaços
Foi essa ausência de referências que motivou o carioca Vinícius Andrade, o Vinny, a agir. Natural de São Gonçalo (RJ), ele chegou a Blumenau em 2016, em busca de oportunidades de trabalho e um recomeço financeiro. Dançarino e coreógrafo, formado em ballet, jazz, sapateado e dança de rua, Vinny se deparou com um cenário que o incomodou: poucas pessoas pretas nos ambientes culturais da cidade.
“Não posso dizer que não existia movimento, porque existia, mas eram poucas pessoas pretas nos espaços. E isso me fez pensar por que elas não estavam ali. Foi dessa inquietação que nasceu o NWA”, conta. O nome, escolhido de forma simbólica, vem do Igbo, um dos idiomas falados na África, e significa “preto”.
O NWA Dance Crew surgiu em 2022 com um grupo pequeno de seis integrantes. Hoje reúne quase 20 pessoas de diferentes idades e origens. “Minha expectativa inicial era só fazer um rolê nosso, reunir pessoas pretas que gostassem de dançar. Mas virou algo maior: um espaço de resistência e de representação. Quando dançamos, outras pessoas pretas, mesmo as que não dançam, se sentem representadas”, explica.
As aulas acontecem às quintas-feiras, em um espaço cedido pela escola Station Dance Complex, de forma gratuita. Em agosto, o projeto se expandiu com uma versão para jovens de 12 a 15 anos.
Os integrantes encontram na dança um espaço de expressão, como Antonieta Perez, artista e pintora muralista vinda da Venezuela. Ela chegou a Blumenau em 2019, depois de uma temporada em Roraima, e conta que enfrentou desafios logo ao desembarcar. “Cheguei sem falar bem português e com uma dívida de passagem para pagar. Ouvi muito que Blumenau tinha empregos, mas que havia preconceito. Uma tia minha que já estava morando aqui me disse que realmente havia muitos empregos, e mesmo que falassem do preconceito e da frieza dos descendentes de alemães, decidi me arriscar por um futuro melhor”, relata.
Antonieta conheceu o NWA por meio de uma amiga, e hoje vê o grupo como um espaço de recarregar energias. “É um lugar acolhedor, de troca de conhecimento e de pertencimento. Aqui eu posso me expressar sem ser julgada”, aponta.
Enriquecimento cultural
O surgimento de grupos como o NWA ajuda a reconfigurar a cena cultural da cidade e amplia o debate sobre identidade e diversidade. “Hoje somos uma potência e uma referência dos grupos pretos em Blumenau, mas a conversa está longe de acabar. A força contrária é violenta, e se a gente não grita, a mudança não acontece”, afirma Vinny.