Trabalho no campo resiste com descendentes de imigrantes

Pequenas propriedades carregam riqueza cultural e econômica, mas enfrentam desafios 

Natalia Bollmann De Azevedo 

No século XIX, o Vale do Itajaí se tornou destino de milhares de imigrantes europeus. Vindos principalmente da Alemanha, Itália e Polônia, eles traziam consigo o sonho da posse da terra e a esperança de prosperidade. Entretanto, ao chegarem ao Brasil, encontraram uma realidade bem diferente da propaganda que os havia motivado a atravessar o oceano: mata fechada, terrenos íngremes e enchentes frequentes. A terra, tão desejada, não estava pronta para cultivo. O que os imigrantes encontraram foi um território de difícil adaptação, que exigiu esforço coletivo para abrir espaço para a agricultura. O modelo resultante foi o das pequenas propriedades, que ao longo do tempo se dividiram, formando a base das pequenas roças típicas da região. 

A professora e historiadora Sueli Petry explica que a imigração europeia estava ligada aos problemas que se agravavam no outro lado do oceano. “A Europa atravessava um momento de muitas dificuldades, após a era napoleônica, e também houve um grande cataclisma climático, causado por um vulcão na Ásia. As cinzas permaneceram no céu por dias, prejudicando plantações e levando à escassez de alimentos”, relata. Ao mesmo tempo, artesãos e trabalhadores urbanos perdiam espaço com o avanço da Revolução Industrial, enquanto camponeses já não conseguiam se manter em terras arrendadas. 

No Brasil recém-independente, a imigração também atendia a interesses políticos. O Império buscava consolidar sua ocupação no Sul, reduzir a dependência de mercenários estrangeiros e impulsionar a agricultura. “Dona Leopoldina foi uma grande incentivadora da vinda de alemães. Havia a necessidade de povoar, ocupar e trazer mão de obra para o desenvolvimento agrícola”, explica Sueli. 

Mas nem todos os imigrantes receberam o mesmo tratamento. Os italianos e tiroleses, por exemplo, vieram amparados pelo contrato Caetano Pinto, idealizado durante o governo de Dom Pedro II. Esse acordo previa o transporte custeado e a concessão de terras demarcadas. O objetivo era trazer cem mil imigrantes católicos, a maioria agricultores, ao longo de dez anos. Assim, chegaram com quase tudo pago e receberam lotes prontos para o cultivo. 

Já os imigrantes alemães, especialmente os trazidos por Hermann Blumenau, viveram outra realidade. Ao requerer as terras pela Lei nº 49 de 1836, Hermann Blumenau obteve o direito de ocupar 20 léguas e vendê-las em lotes organizados. A primeira divisão ocorreu em 1852, entre compradores como Fritz Müller e seu irmão August Müller, que pagaram à vista. Hermann Blumenau tinha dez anos para povoar a área, sob pena de perder a concessão. Cumpriu o prazo, mas acabou endividado e vendeu parte das terras ao Império para quitar débitos. Diferentemente dos italianos, os colonos alemães precisaram comprar seus lotes e pagar juros em prazos longos. Eram, em sua maioria, protestantes e artesãos, sapateiros, carpinteiros, ferreiros, alfaiates, que, diante da necessidade, se tornaram agricultores. Com o tempo, retomaram seus ofícios e fundaram pequenas oficinas e indústrias, sementes do parque industrial que marcaria o Vale do Itajaí. 

A vida dos primeiros colonos foi marcada por improviso e aprendizado. Abrigados em cabanas de madeira, aprenderam técnicas de cultivo de mandioca, batata-doce e inhame. Aos poucos, introduziram o fumo e outras lavouras, formando núcleos que dariam origem aos atuais bairros de Blumenau e cidades da região. 

Esse cenário de luta também motivou novos deslocamentos. Já no século XX, muitos descendentes buscaram terras mais amplas e baratas no Oeste de Santa Catarina, no Sudoeste do Paraná e no Norte do Mato Grosso, em cidades como Sinop, Sorriso e Lucas do Rio Verde. A busca por espaço para plantar e criar animais permaneceu como um fio condutor da história. 

Mais de 170 anos após o início da colonização, os reflexos dessa trajetória ainda são visíveis em Blumenau, especialmente em bairros como a Vila Itoupava. Se no passado o desafio era abrir a mata, hoje ele se traduz em pressões econômicas, sociais e ambientais. 
 
Registros históricos da região indicam que a Colônia Blumenau avançou de forma gradual conforme novos grupos chegavam. Mapas e relatórios administrativos do período mostram a criação de ligações entre os lotes e a instalação de pontos de apoio usados para distribuição de materiais e orientação aos colonos. Também aparecem referências à construção das primeiras escolas comunitárias, que passaram a organizar parte da vida social e auxiliar na estruturação dos futuros bairros. Documentos apontam a abertura de pequenos caminhos para escoamento da produção agrícola, além da instalação de mercados e feiras locais que facilitaram o comércio local. 

Tradição e resistência marcam a herança dos imigrantes no Vale do Itajaí 
 

Segundo o IBGE, cerca de 77% dos estabelecimentos agropecuários do Brasil fazem parte da agricultura familiar, o que demostra como esse modelo ainda resiste. Na Vila Itoupava, famílias descendentes dos primeiros colonos continuam cultivando a terra, não apenas por tradição, mas como complemento de renda, mesmo que a produção já não seja como antes. 

Na propriedade de Raulina Otto, 76 anos, a rotina ainda gira em torno da roça de aipim, batata e milho. O que antes sustentava gerações, hoje serve mais ao consumo próprio, mas o vínculo com a terra continua. “Com oito anos eu já tirava leite e, com 13, arava a terra com burros e arado”, lembra. Antes dos maquinários, tudo dependia da força física. “Era tudo no braço, com machado na mão”, conta. A venda de pequenos excedentes, couve, ovos, taiá, garantia o mínimo. “A gente sempre lutou para sobreviver”, diz Raulina, com o mesmo orgulho com que mostra o fogão a lenha aceso e o pão recém-saído do forno. 

Seu filho, Miro Otto, simboliza a ponte entre o passado e o presente. Ele concilia o trabalho formal com o cuidado da propriedade. “É puxado, porque eu trabalho no terceiro turno todos os dias”, conta. Ao chegar em casa, a rotina recomeça: vacas, galinhas e trato dos animais. “Por aqui não tem fim de semana. Os bichos precisam comer todo dia”, lembra. Essa realidade, comum na região, revela o esforço de manter viva uma tradição mesmo diante das exigências do trabalho urbano. 

A distância também é um desafio. Morar longe do centro de Blumenau significa lidar com longos deslocamentos diários e limitações no acesso a serviços. 

O morador e membro do Conselho de Administração do Centro Turístico e Cultural da Vila Itoupava, Manfred Gruetzmacher, destaca que a vida na região é marcada pela cooperação. A distância do centro urbano e a dificuldade de acesso fazem com que os moradores dependam uns dos outros para manter o cotidiano em funcionamento. “As famílias se ajudam. Se alguém precisa levar a produção até a cidade, divide o transporte com o vizinho, o mesmo vale para o uso de equipamentos agrícolas”, conta.  

Segundo Manfred, essa solidariedade é também uma resposta aos desafios impostos pela logística. O deslocamento até o centro pode levar cerca de uma hora em horários de pico, o que afeta o acesso a serviços e a presença de profissionais. “É difícil alguém vir aqui trabalhar. Até mesmo para conseguir professores nas escolas do bairro é complicado. Muitas vezes, médicos e profissionais de saúde também não querem assumir postos aqui, justamente pelo deslocamento”, afirma 

Legado em movimento 

O Vale do Itajaí é, ao mesmo tempo, resultado e testemunha de uma longa jornada. O sonho dos imigrantes não se encerrou nos lotes demarcados, mas segue presente na organização das propriedades e na cultura regional. Hoje, porém, a agricultura familiar enfrenta desafios cada vez mais evidentes: o envelhecimento da população rural, a falta de sucessores e a pressão constante da urbanização. Dados do Censo Agropecuário de 2017 mostram que mais de 70% dos produtores rurais do país têm mais de 45 anos, e o êxodo dos jovens ameaça diretamente a continuidade das pequenas propriedades. 

Mesmo assim, algumas iniciativas tentam revitalizar esse legado. Programas públicos de incentivo à agroindústria, ao turismo rural e à produção sustentável buscam manter ativa a relação entre homem e terra. Na Vila Itoupava, projetos de turismo cultural e gastronômico resgatam tradições e transformam antigas práticas em alternativas econômicas, ainda que o alcance dessas ações varie entre as famílias. 

Mas, apesar desses movimentos, os desafios seguem maiores que as soluções. Muitos agricultores enfrentam burocracia para acessar incentivos, e a distância dos centros urbanos dificulta a participação em cursos e formações. A ausência de mão de obra jovem, somada ao peso do trabalho diário, torna incerto o futuro de diversas propriedades. Em algumas comunidades, áreas antes cultivadas começam a ser tomadas pelo mato ou dependem exclusivamente de moradores idosos que mantêm o que conseguem, no ritmo que ainda lhes é possível. 

O cotidiano mostra que permanecer no campo exige conciliar múltiplas funções, trabalhar fora, cuidar da propriedade, manter animais, administrar custos e atender a um mercado que demanda volume e regularidade. Essa combinação de pressões cria um cenário em que a continuidade da atividade agrícola se torna cada vez mais difícil. Sem renovação geracional e com um ritmo de vida cada vez mais exaustivo, a manutenção das pequenas propriedades passa a ser uma decisão adiada até que não reste outra opção. 

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