Haitiana reescreve a própria história por amor aos filhos em Blumenau

Yanika deixou o Haiti em busca de um futuro melhor para os filhos, mostrando que Blumenau segue como uma cidade de recomeços

Por Victor Guerreiro

Yanika Flamand, 35 anos, acorda antes de o sol nascer. Prepara o café, organiza os filhos e pega o ônibus para o trabalho de zeladora, em Blumenau. No trajeto ao serviço, embalada pelo chacoalhar da condução, lembra da travessia que mudou a vida da família. Há quase uma década deixou o Haiti, passou cinco anos longe dos filhos mais velhos, e recomeçou no Brasil. Todas as manhãs, ao acordar junto de quem mais ama, ela se orgulha da rotina que construiu após migrar: trabalho, família e esperança de dias melhores.

A cena não é inédita. Blumenau nasceu desse mesmo impulso humano: migrar. No século XIX, famílias alemãs atravessaram o Atlântico para fugir da fome e da falta de terras. “A história humana é a história da migração. Se a gente observar a origem da humanidade, sempre esteve em fluxo”, afirma o sociólogo Maiko Rafael Spiess, da Universidade Regional de Blumenau.

Yanika partiu em busca de dignidade. No Haiti, ela e a família cultivavam arroz, milho, amendoim e feijão na comuna de Lascahobas. “Minha infância foi mesmo trabalhar com terra, plantar tabaco, todas essas coisas que até davam uma oportunidade de emprego, mas não era o suficiente. Eu precisava trazer meus filhos para o Brasil para terem uma vida melhor”, relata. A morte dos pais, a maternidade solo aos 17 anos e a crise nacional agravada pelo terremoto de 2010 deixaram a vida no Haiti quase insustentável. “Sou uma pessoa que gosta de trabalhar para conseguir as coisas. Então foi por isso que saí, as oportunidades de lá não ajudavam. Era muito difícil mesmo”, lembra. A primeira parada foi na República Dominicana, onde também teve dificuldades, até que uma irmã já instalada no Brasil abriu o caminho.

Ao longo dos séculos, as razões para a migração mudaram, motivadas principalmente por guerras, crises políticas, desastres naturais, busca por dignidade ou a promessa de emprego e estudo. Spiess explica que Blumenau só pode ser compreendida à luz desse fio contínuo de deslocamentos humanos. “Boa parte dos alemães e italianos que vieram para cá estavam fugindo de uma Europa em mudança. Alguns deles estavam acostumados a viver numa sociedade rural e a Europa estava passando por uma revolução industrial. Essas pessoas vinham, também, porque elas queriam uma vida melhor”, reitera o sociólogo.

Entrevista com o sociólogo Maiko Rafael Spiess

Em 2014, Yanika desembarcou no Mato Grosso. Ela carregava na mala a decisão mais dura: deixar os filhos Alejandro e Masielly no Haiti até juntar o dinheiro necessário para trazê-los ao Brasil. À beira das lágrimas, lembra como foi duro viver sem eles por perto. Entre faxinas e empregos temporários, sustentava a saudade com chamadas de vídeo e ligações. Porém, a dor da distância também serviu como motivação para alcançar uma nova vida. Cinco anos depois, já morando em Blumenau com outra irmã, reuniu dinheiro e documentos. Em 2020, concretizou o sonho de trazer os filhos, os apresentou ao irmão mais novo, que havia nascido em solo brasileiro, e pôde descrever aquele abraço de reencontro como “o dia mais feliz da vida”.

A integração foi difícil, mas atualmente Yanika se sente acolhida e em casa. A filha Masielly, hoje com 14 anos, já reflete o resultado desse esforço ao ser campeã brasileira de atletismo, com participação em competições internacionais. É a tradução do que Blumenau sempre representou ao ser um lugar de recomeços. O cotidiano da família mostra encontros: cozinhas que misturam temperos, festas que combinam forró e música caribenha, escolas onde novos sotaques se somam ao português. Yanika preserva a cultura haitiana sem abrir mão do respeito e carinho pela cidade que a recebeu. “Quando cheguei aqui, fui recebida de braços abertos. Trabalhei duro, cuidei dos meus filhos e o Brasil nos deu oportunidades. Todo mundo nos acolheu com humildade, então não tem nem o que reclamar”, conta.

Historicamente, Blumenau nasceu de fluxos migratórios que buscavam sobrevivência e refúgio, e a cidade continua a escrever essa história, adaptando-se aos novos contextos e mantendo a essência de quem a construiu. Hoje, a cidade ainda acolhe novos rostos e histórias. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um em cada quatro moradores não nasceu em Santa Catarina. Do total de 361 mil habitantes da cidade identificados no último Censo, 90,4 mil vieram de outros estados ou do exterior.

Na avaliação de Spiess, a presença de migrantes não apenas repete o ciclo do passado, como também projeta o futuro do município. “Blumenau foi fundada por imigrantes, ainda tem um fluxo bem forte. As pessoas estão buscando melhores condições e, por acaso, elas encontram isso aqui. Inclusive, às vezes, estão dispostas a lidar com uma certa resistência em troca dessa condição melhor de emprego e de segurança, e até aceitam lidar com a saudade do lugar de onde vieram originalmente. Desde que o mundo é mundo, as pessoas fazem isso”, reflete.

Yanika, como tantos outros, não veio por aventura, mas por necessidade, esperança e amor aos filhos, que já estão crescidos, estudam, são tão dedicados e trabalhadores quanto a mãe, e podem contar com um futuro promissor pela frente. Nos pequenos gestos, como no café da manhã em família, o culto de domingo e o treino de atletismo da filha, a mãe encontra o retrato do futuro que buscou. Uma história que ecoa como a de tantos que, desde 1850, vêm transformando o município de Blumenau com o ato de recomeçar.


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