Indígenas foram os primeiros a ocupar o Vale

Por Nicole De Liz

Antes da chegada dos primeiros imigrantes europeus, o Vale do Itajaí já era habitado. Povos originários, como Kaingang e Xokleng, viviam na região e mantinham uma relação direta com a floresta, rios e terras férteis, que mais tarde despertariam o interesse dos colonizadores. A presença indígena, no entanto, foi sistematicamente invisibilizada na narrativa oficial sobre a fundação de Blumenau, que inicia em 1850 com a chegada de Hermann Bruno Otto Blumenau e dos primeiros colonos alemães.

A historiadora Sueli Petry conta como a disputa por território marcou o contato entre esses dois mundos. De acordo com ela, para os indígenas, o espaço era fundamental à sobrevivência, já que servia para caça, coleta e deslocamentos sazonais. Para os colonos, era a base de um projeto agrícola e de progresso industrial. Esse choque de interesses deu lugar a conflitos. “Com a chegada dos imigrantes, havia um desconhecimento da cultura de ambas as partes, e os indígenas, acostumados a circular livremente, passaram a se ver privados de seus espaços, o que gerou atritos”, lembra.

Segundo a pesquisadora, o avanço da colonização trouxe episódios de violência pouco registrados pela memória oficial. “Comerciantes contrataram grupos de ‘batedores de mato’. Eles capturavam mulheres e crianças, traziam para os centros urbanos ou atacavam comunidades inteiras”, relata. Houve, segundo ela, verdadeiras chacinas, mas como os nativos não escreveram sua história, restou apenas a versão dos colonizadores.

A ausência de registros contribuiu para o apagamento cultural. Nos jornais da época, como o “Der Urwaldsbote”, os indígenas eram descritos “como se fossem animais”, reforçando estereótipos que legitimavam a violência. Ainda assim, o jornal “Blumenauer Zeitung”, escrito pelo médico alemão Hugo Gensch, produziu documentos a partir de figuras indígenas e despertou o interesse de antropólogos estrangeiros.

Com o passar do tempo, a exclusão se aprofundou. “Prometeu-se muito e cumpriu-se pouco. Os indígenas foram explorados economicamente, perderam suas terras e acabaram empurrados para situações de pobreza e isolamento”, cita a historiadora. Ela avalia que ninguém facilitou para que pudessem participar da sociedade da mesma forma que os brancos. “Muitos acabam sendo vistos como pedintes, quando, na verdade, estão tentando vender seus produtos, trabalhar, viver dignamente”, comenta.

Sueli conta que nesses últimos anos, por muito tempo, indígenas da cidade iam até o Arquivo Histórico, na Biblioteca Municipal, querendo que ela contasse o que soubesse sobre os povos originários do Vale do Itajaí. “É uma história que eles mesmos passaram a desconhecer. Agora, sim, começam a surgir novos movimentos, mas ainda percebemos que vivem numa condição muito precária, muito aquém do que deveriam”, percebe a historiadora.

Comunidades busca reconhecimento e espaço na sociedade

A narrativa oficial da cidade, por sua vez, continua centrada na coragem dos imigrantes europeus, deixando em segundo plano o preço pago pelos povos originários. Essa visão continua mesmo com a comunidade indígena crescendo em Santa Catarina. De acordo com o Censo de 2022 do IBGE, foram registradas 21.541 pessoas indígenas, um aumento de 18,2% em relação ao levantamento de 2010. E esse silenciamento ecoa ainda hoje, como mostra a experiência da estudante de Design, da Furb, Tchantang Tschucambang, que se identifica como indígena mestiça.

Ela conta que sua família carrega em si a mistura de culturas. O bisavô paterno era alemão, casado com uma indígena, e dessa união nasceu seu pai. Para Tchantang, manter essa identidade é uma forma de preservar a memória que ainda sofre com a invisibilidade. “Acho a comunidade indígena muito importante, principalmente aqui no Vale do Itajaí, onde há pouca representatividade”, diz. Embora não esteja próxima das atividades da comunidade, o sentimento de pertencimento permanece e atravessa gerações. “Sinto muito orgulho de poder fazer parte dessa história e mostrar que estamos aqui”, afirma.

Ela também ressalta o contraste entre o que aprendeu na escola e a memória preservada dentro da família. “Muitas escolas ainda deixam muita coisa de fora, tentam mostrar só o lado bonito, o lado branco”, comenta. Para ela, a violência da colonização, como a atuação dos caçadores de índios, foi apagada dos livros didáticos. Tudo que sabe sobre a trajetória de sua família indígena, ela aprendeu com os pais, e não nos bancos escolares.

Outro ponto que chama a atenção de Tchantang é a ausência de referências indígenas na região e a falta de representatividade por conta dos estereótipos. “Ainda existe a visão de que índio é preguiçoso ou atrasado, mas se tivéssemos mais oportunidades para professores e estudantes indígenas, poderíamos mostrar o contrário e ajudar essa população a sair da pobreza”, avalia.

A professora indígena Maria Elis Tolym Nunc-Nfôonro, pesquisadora e educadora do povo Laklãnõ, reforça que esse apagamento não pertence apenas ao passado. “Formações que eu faço sobre cultura indígena já foram negadas a servidores da assistência social porque disseram que o tema não era relevante. É uma forma de nos dizerem que não fazemos parte da história, quando na verdade sempre estivemos aqui”, critica.

Maria Elis concorda que esse esquecimento atinge a vida cotidiana das novas gerações. Para ela, a perda do território significou também a perda de costumes ligados à natureza. “Minha mãe cresceu pescando e cultivando às margens do rio. Eu já sou de uma geração que não nada em rio nenhum. Quando as barragens foram erguidas e fomos afastados da água, ficamos ainda mais distantes de nossa cultura”, relata.

A professora aponta que o modo de viver do indígena é diferente daquele da população branca, que vive em uma sociedade de consumo. Por isso, a relação dos povos originários com o território é e muitas vezes, incompreendida. “A luta indígena não é apenas por terras, mas também por visibilidade e dignidade. Não queremos devastar, nem plantar monoculturas, queremos deixar a floresta crescer. Nós nos vemos como parte do território. Sem rio limpo e sem mata em pé, ninguém vive, não só nós”, afirma.

Ela explica que, embora seja uma história do passado, a luta continua para manter as terras indígenas, pois são elas que garantem a preservação da cultura do seu povo. “Então se a gente não tem a manutenção desses territórios, automaticamente a gente perde a nossa cultura. E é isso que a gente tenta mostrar para as pessoas”, justifica.

Atualmente, a luta indígena em Santa Catarina continua presente nos debates sobre demarcação de terras e no embate jurídico em torno do chamado marco temporal, que busca restringir os direitos territoriais apenas às áreas ocupadas em 1988, ano da promulgação da Constituição. Para povos como os Xokleng e Kaingang, expulsos muito antes dessa data, essa interpretação ameaça perpetuar a injustiça histórica.

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