Falta de documentos, barreiras linguísticas e preconceito ainda dificultam acesso e acolhimento nas salas de aula
Por Emilly Coelho Farias
A migração deixou de ser um fenômeno distante para se tornar realidade dentro das salas de aula brasileiras. Crianças e adolescentes que cruzam fronteiras em busca de proteção e novas oportunidades encontram, na escola, não apenas o espaço de aprendizado, mas também o primeiro ponto de acolhida social e cultural.
Segundo dados do Educa IBGE, levantados em agosto de 2025, cerca de 1 milhão de pessoas nascidas em outros países vivem no Brasil: 70,3% a mais que em 2010 (592 mil pessoas). A chegada dessas famílias representa um desafio para o sistema educacional, que precisa se reinventar para garantir acesso, permanência e qualidade no ensino.
Na teoria, toda criança migrante tem direito imediato à educação pública no Brasil. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e o Estatuto do Refugiado asseguram matrícula gratuita, mesmo sem a apresentação de documentos. Na prática, no entanto, nem todas as escolas estão preparadas para lidar com a ausência de certidão de nascimento, histórico escolar ou carteiras de vacinação, exigências comuns no processo de ingresso.
Em Indaial (SC), a Secretaria Municipal de Educação garante a matrícula e acompanha os trâmites até a regularização. “A rede municipal de ensino assegura o direito de matrícula imediata e oferece acompanhamento até a regularização da situação, evitando qualquer prejuízo ao acesso à educação”, afirma o secretário de Educação, Manoel Boaventura.
Se a documentação é o primeiro obstáculo, a língua se torna o mais complexo. Muitos estudantes chegam sem falar português, o que dificulta tanto a compreensão das aulas quanto a socialização com os colegas.
“No momento não temos protocolos específicos para migrantes, mas a acolhida é feita pela própria direção da escola”, explica Sabrina Lance, coordenadora do Ensino Fundamental de Indaial. Ela reconhece que ainda faltam programas formais de capacitação para professores, capazes de lidar com a diversidade linguística e cultural.
Na Escola Básica Municipal Rudolfo Alfarth, também em Indaial, a realidade já é visível: 25 alunos imigrantes, a maioria venezuelanos, estão distribuídos em diferentes séries, com turmas que chegam a ter três estudantes migrantes.
A experiência das famílias confirma que o processo de adaptação envolve desafios, mas também avanços diários. Elba Marines Rodrigues, mãe de Emiliannys, Emyli e Santiago, três estudantes migrantes da Escola Rudolfo Alfarth, conta que aprender um novo idioma e uma nova cultura foi um caminho longo, mas transformador.
“A educação no Brasil é um tema desafiador para estrangeiros, pois eles precisam aprender outro idioma e outra cultura. Em nossas experiências, todos os dias eles aprendem algo novo na escola. Devemos agradecer ao Brasil, especialmente a Santa Catarina, por permitir que eles estudassem e por serem bons alunos. Os professores recebem 80% dos créditos, porque frequentemente dedicam tempo para aprender um pouco do nosso idioma, o espanhol. Graças a eles, meus filhos estão empenhados em querer aprender mais. Independentemente dos obstáculos, é importante enfrentá-los”, relata.
O relato da mãe é confirmado pela observação dos profissionais em sala de aula. Apesar das dificuldades de compreensão, o esforço dos estudantes e também dos professores ajuda a superar as barreiras linguísticas.
“Alguns ainda misturam bastante o espanhol com o português, principalmente na escrita, e também apresentam dificuldades em certas pronúncias. A gente percebe que isso faz parte do processo de adaptação, e estamos sempre auxiliando para que eles consigam desenvolver as habilidades da melhor forma possível”, conta Nayara Giotti Alfarth, professora na escola.
Para além das dificuldades linguísticas, o processo de adaptação emocional também exige sensibilidade por parte da equipe escolar. Muitos alunos migrantes chegam tímidos, inseguros e com receio de se integrar, reflexos das mudanças vividas em um novo país.
Na escola, a professora Nayara observa diariamente como o acolhimento faz diferença no desenvolvimento dos estudantes.
“Tenho uma aluna que, no começo do ano, era muito tímida e fechada, sempre bastante receosa em participar. Nos primeiros dias, ela quase não falava e preferia ficar mais isolada, observando os colegas de longe. Com o tempo, fomos criando vínculos, incentivando sua participação em atividades coletivas e valorizando cada pequeno avanço. Ver essa evolução é muito gratificante, porque mostra que, com acolhimento e apoio, cada aluno consegue encontrar seu espaço e desenvolver suas habilidades, tanto de aprendizagens quanto sociais”, relatou a professora.
Além das barreiras administrativas e linguísticas, as crianças também enfrentam preconceito. No Brasil, uma em cada seis crianças de até seis anos já foi vítima de racismo, principalmente em creches e pré-escolas. É o que diz o “Panorama da Primeira Infância: o impacto do racismo”, pesquisa nacional encomendada ao Datafolha pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Em Santa Catarina e outras regiões, relatos de xenofobia e discriminação reforçam a necessidade de políticas eficazes contra o bullying e em favor da diversidade cultural nas escolas.
“É essencial motivar essas crianças para aprender, mas isso só acontece em um ambiente onde elas se sintam seguras e respeitadas”, destaca a psicopedagoga Maristela Michels Welter. Segundo ela, o trauma da migração pode se manifestar em dificuldades de concentração e baixa autoestima, exigindo um olhar especializado.
Rede de proteção social acolhe crianças e pais migrantes
A acolhida de famílias migrantes ultrapassa os muros escolares e envolve outras frentes de atuação. O secretário de Desenvolvimento Social de Indaial, Márcio de Oliveira, explica que os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) são a porta de entrada dessa política. “Nosso papel é assegurar a proteção social e o sentimento de pertencimento. Oferecemos orientações, atividades coletivas e encaminhamentos para a rede de apoio. Ainda não temos um programa específico para migrantes, mas atendemos essas famílias dentro da Proteção Social Básica”, afirma.
Segundo o secretário, entre 30 e 40 famílias migrantes são atendidas por ano em Indaial, recebendo acompanhamento e suporte. Um dos gargalos está na obtenção de documentos civis, como CPF e certidões de nascimento. Sem eles, o acesso a serviços públicos, incluindo a matrícula escolar, seria mais difícil. A Secretaria, no entanto, garante apoio para viabilizar a documentação.
Além da sala de aula
Para a psicopedagoga Maristela Welter, a chave é enxergar o aluno migrante como sujeito integral. “É preciso olhar para a criança para além das dificuldades. Muitos trazem histórias de resiliência, superaram traumas e encontram na escola a chance de recomeçar. O acolhimento familiar e a comunicação aberta entre escola e pais são fundamentais nesse processo”, aponta.
Com base nesse entendimento, profissionais da área defendem que a consolidação de medidas estruturadas pode ampliar o acesso e fortalecer o sentimento de pertencimento dos estudantes que chegam de outros países, permitindo que encontrem, na escola, um ambiente seguro e estável para avançar na aprendizagem.