O resgate da cultura e pertencimento dos italianos em Blumenau

Esforços são realizados para manter as tradições e idioma vivos entre seus descendentes

Por Lucas Rodrigues

As raízes alemãs de Blumenau são indiscutíveis. Entretanto, no passado a cidade recebeu povos de outras partes da Europa. Com seus primeiros imigrantes chegando na década de 1870, a imigração italiana para o Brasil teve seu ápice entre 1880 e 1910, instalando-se principalmente nas regiões  sul e sudeste. Em Santa Catarina, esse movimento deu origem a cidades como Rio dos Cedros, Rodeio, Ascurra e Apiúna, entre outras, que faziam parte da colônia de Blumenau na época. 

Uma das famílias que se mudou para a região foi a de sobrenome Mikely, da qual descende Felicidade Natal Furtado, 73 anos. Entretanto, a falta do nome de família em seu documento de identidade não é a única coisa que se “perdeu” em sua origem e criação. 

Nascida na região de Nova Trento, Felicidade, mais conhecida como Dadinha, conta que era filha de um típico “italiano raiz”. Fluente em italiano e no dialeto trentino, Jovino Hercilio Natal Mikely tinha como base de sua alimentação a polenta e formaggio (queijo). Ele também fabricava o próprio vinho artesanal de laranja. 

Apesar de ser um tanto quanto atrapalhado no uso do português, Jovino sempre teve o desejo de transmitir tradições e costumes para as próximas gerações. Entretanto, os filhos não estavam dispostos a aprender sobre a origem. “Ele se sentava em uma cadeira antes de dormir e ficava ali ensinando o italiano e o dialeto para os meus irmãos. Éramos em oito irmãos. Mas enquanto ele queria ensinar o italiano e contar a história dos Mikely, nós só olhávamos uns para os outros e ríamos”, conta Dadinha. 

Algumas palavras como buonanotte (boa noite), buongiorno (bom dia), e o início da oração da Ave Maria em italiano foram o máximo que Felicidade Natal conseguiu aprender dos anos de convivência com o pai. Foram ensinamentos que hoje sente falta por não ter aprendido. “Nenhum dos irmãos aprendeu o italiano ou seus costumes. E eu me arrependo disso. Me arrependo bastante. Porque agora eu poderia ensinar para minhas filhas e netos. Não queria perder essa cultura da minha família”, diz. 

Cultura de boca a boca

A cerca de 40 km de Blumenau, outra descendente de italianos também luta para preservar as tradições italianas de sua família. Eliete Maria Busarello Panini, natural e moradora do município de Rio dos Cedros, conta que desde cedo conviveu com os costumes italianos.

“Na minha infância, na minha família só falávamos em dialeto Trentino. Com isso, falo dialeto fluente. Eu não sabia falar brasileiro até meus 7 anos e aprendi somente na escola”, comenta.

Eliete relata que a tradição mais importante que luta para preservar é justamente o dialeto Trentino. Ela passou seu conhecimento para a família, na esperança de conservar suas raízes.

“Eu mantenho essa tradição do dialeto ainda muito viva. Ensinei minhas duas filhas a falar fluentemente Trentino e depois curso de italiano gramática. E agora temos dois netos no qual já estamos ensinando também o dialeto”, explica.

O idioma é uma das melhores formas de disseminar e manter viva uma determinada cultura. Segunda a professora e especialista no ensino de idiomas, Marta Helena Cúrio de Caetano, língua e cultura são inseparáveis. “Uma não existe sem a outra. Língua não é meramente um instrumento de comunicação, mas ela é vista como algo que preserva também os valores, a história e, claro, a coletividade, a identidade coletiva de um povo”, explica.

Marta, que é doutora em Educação, diz que a aprendizagem e o uso de uma língua criam um sentimento de pertencimento e de continuidade histórica. Assim, o idioma auxilia na promoção da cultura, mas ao mesmo tempo, compreender a cultura é fundamental para aprender uma língua.

Em Santa Catarina, vários municípios ofertam o ensino da língua italiana nas escolas da rede pública municipal de ensino, como forma de preservar a herança cultural deixada pelos imigrantes.

Preservação dos costumes e tradições

Em Blumenau, 42% dos moradores possuem ascendência italiana. É o que revela uma pesquisa de 2025 realizada pela Associação de Municípios do Vale Europeu (Amve). Mas, para que essas origens não sejam apenas de sobrenomes ou de cidadanias, esforços são realizados por algumas organizações que buscam manter os costumes e a cultura italiana. 

Uma dessas entidades é o Circolo Italiano di Blumenau, fundado em maio de 1989 com o intuito de manter e difundir as tradições italianas no Vale do Itajaí, mais precisamente em Blumenau. Em dezembro de 1993, o grupo se fundiu com a Sociedade Recreativa e Cultural Lyra, de origem alemã, criando assim o Lira Circolo Italiano di Blumenau, que está ativo até hoje. 

“Desde a fusão, a sociedade criou um grupo de canto. Aos poucos, foi sendo montado com mais de uma voz, duas vozes, quatro vozes, e ele se mantém até hoje. E nós chamamos de Gruppo di Canto Fratelli do Lira Circolo Italiano di Blumenau”, relata Mario Tachini, presidente do Lira Circolo. 

Outra iniciativa organizada foi a criação da escola Giuseppe Garibaldi, que segue na ativa há mais de 30 anos ensinando o idioma e aspectos do cotidiano da Itália. “Temos eventos gastronômicos e culturais. Comemoramos os 150 anos da grande imigração italiana em Santa Catarina, já tivemos dois eventos internacionais vindos da Itália, uma orquestra e um grupo de teatro que fizeram um grande sucesso”, comenta. 

Um dos exemplos gastronômicos é a Noite do Nhoque, que reúne amantes das massas e da cultura para celebrar a origem e a ancestralidade italiana. O Circolo também participa da Festitália, evento de celebração da cultura italiana, desde a primeira edição da festa.

“A Festitália é uma junção de toda essa tradição, porque lá tem a música italiana, através das bandas, dos corais, tem a dança, e tem a questão da alimentação, da comida. Então, teve uma variedade bem grande de pratos, o vinho também”, explica a diretora de cultura do Lira, Marilúcia Mattedi. 

Atividades para crianças também são promovidas pelo Lira, para que as novas gerações se familiarizem com a cultura e a história dos antepassados. No Dia das Crianças, uma peça de teatro contando alguma história ou personagem oriundo da Itália é organizada. Em 2024, o teatro contou a vida de Leonardo da Vinci, uma das maiores personalidades italianas e da história. Neste ano, a peça retratou a chegada dos imigrantes italianos no Brasil, e fez parte da celebração dos 150 anos da imigração. 

Marilúcia diz que as atividades fazem parte de um esforço de preservação da identidade das famílias italianas e do sentimento de pertencimento a uma comunidade. “Eu acho que, se você conhecer a sua história, você consegue se situar no mundo. Então, a cultura, a história, é necessária para o seu desenvolvimento como pessoa, para você estar no mundo. Então, você ter a oportunidade de acessar isso de uma forma tranquila, lúdica, de troca de pessoas, é riquíssimo”, comenta.

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