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Uberização do trabalhador: Liberdade ou exaustão? 


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Gravação por Anna Coirolo.

Os modelos de organização do trabalho refletem as diferentes necessidades e possibilidades de cada época. O Taylorismo trouxe a ciência para o chão de fábrica, focando na divisão de tarefas e no aumento da produtividade. O Fordismo consolidou a produção em massa por meio da linha de montagem e custos flexíveis. Com o avanço tecnológico e a globalização, o Toyotismo destacou a flexibilidade, adaptando-se às demandas do mercado com menos desperdício. 

Hoje, a uberização rompe com as estruturas clássicas da organização do trabalho. Esse é um fenômeno em que a relação tradicional de emprego é substituída por uma dinâmica mediada por plataformas digitais, como a plataforma Uber, que conecta diretamente prestadores de serviço a clientes. Esse processo se enquadra em uma mudança estrutural mais ampla na economia, conhecida como plataformatização do trabalho, que utiliza sistemas tecnológicos para intermediar a prestação de serviços. 

UBER BLUMENAU

Para a assistente social e professora universitária, Cláudia Sombrio Fronza, a transformação no mercado de trabalho, intensificada desde a crise de 1970, é resultado da adoção de tecnologias como a microeletrônica e a automação. Ela critica a criação de um “falso ideário do empreendedorismo”, ressaltando que, sob a lógica da uberização, o trabalhador é percebido como um autônomo independente que oferece seus serviços. 

No entanto, essa suposta independência é ilusória, uma vez que os trabalhadores permanecem sujeitos às exigências e controles das plataformas digitais. Cláudia descreve essa mudança como um dispositivo que transforma as relações de trabalho, integrando o trabalhador a um sistema em que a prestação de serviços está diretamente ligada à demanda e aos fluxos controlados pelas plataformas, em vez de fazê-lo parte de uma engrenagem produtiva tradicional. 

IMPACTO PARA O TRABALHADOR 

Essa nova dinâmica traz sérias implicações para os trabalhadores. A precarização, apontada pela professora Cláudia, é uma das consequências mais evidentes. Além de perderem direitos trabalhistas, como jornada fixa e benefícios sociais, os plataformizados sofrem com a instabilidade financeira. “Hoje, o trabalhador oferece suas forças produtivas, mas é a empresa que retém o valor gerado nessa relação”, explica a professora. 

Outro problema apontado por um dos motoristas entrevistados é a falsa liberdade associada ao modelo de trabalho. Embora haja a flexibilidade de escolher seus horários, essa liberdade é limitada pela necessidade de estar disponível por longas horas para conseguir uma remuneração mínima. “É uma jornada superior a oito, doze horas, para ter um valor significativo”, completa. 

A ROTINA DOS MOTORISTAS 

A rotina dos motoristas de aplicativo é marcada por longas jornadas e pela busca constante por corridas rentáveis. Para essa reportagem, foram entrevistados um motorista e um ex-motorista do Uber para entender melhor suas rotinas e opiniões. Suas identidades permanecerão anônimas.  

O ex-motorista do Uber, entrou na plataforma após ser demitido de seu estágio em engenharia. Aos 23 anos, ele se viu sem outra fonte de renda e decidiu seguir os passos do pai, que já trabalhava como motorista de aplicativo. “Eu precisava pagar minha faculdade, e como minha mãe tinha um carro que ficava parado em casa, decidi me arriscar no Uber”, conta. 

No início, gostava do trabalho, especialmente pela flexibilidade de horários e pela possibilidade de conversar com diferentes pessoas. No entanto, com o passar do tempo, ele começou a perceber que, embora a plataforma proporcionasse certa liberdade, ela também trazia consigo um ritmo exaustivo. Sua jornada começava cedo: “Eu acordava às seis horas da manhã, ligava o aplicativo e começava a trabalhar imediatamente, sem nem comer nada”, relata o ex-motorista. 

A escolha de iniciar o dia tão cedo não foi por acaso. O horário entre 6h30 e 9h30 da manhã era estratégico, já que muitas pessoas estavam a caminho do trabalho, o que garantiu a ele uma maior quantidade de corridas. No entanto, a corrida pelo dinheiro se tornava mais intensa à medida que o dia avançava. O entrevistado explica que a maioria dos motoristas de aplicativo acaba sendo levada por uma espécie de “ganância”: “Se você trabalha mais, quer mais. Então, a gente começa a trabalhar por muitas horas seguidas, pensando em maximizar os ganhos”. 

Trabalhar longas horas significava renunciar a pausas regulares e de uma alimentação adequada. O ex-motorista fazia suas refeições de forma apressada, muitas vezes apenas comendo um pastel ou outro lanche rápido em algum mercado durante o dia. Almoçar de verdade? “Normalmente, eu só parava para comer lá pelas três da tarde, e não era nada muito saudável”. Além de uma alimentação descuidada, o cansaço físico era constante, já que ele passava a maior parte do dia sentado no carro, lidando com o estresse do trânsito, especialmente nas ruas congestionadas de Blumenau. 

A rotina seguia dessa forma até o final da tarde. Costumava dirigir até as 18h, quando tinha que parar para ir à faculdade. Mesmo assim, ele admite que, se não fosse pelos estudos, provavelmente continuaria dirigindo até muito mais tarde, pois a necessidade de complementar a renda era constante. “Dirigir o dia todo era cansativo, mas eu precisava fazer isso para conseguir pagar a faculdade e outras contas. Mesmo assim, o dinheiro não estava mais compensando”. 

Além das questões financeiras, havia também o desgaste emocional. O estudante destaca que o trabalho de motorista de aplicativo, apesar de oferecer momentos divertidos e oportunidades de conhecer novas pessoas, também era marcado por situações estressantes e até perigosas. Ele relembra que sempre evitava trabalhar à noite, principalmente por medo de assaltos ou de lidar com passageiros embriagados saindo de festas. “Eu tentava trabalhar só durante o dia, mas mesmo assim, ocorria coisas inusitadas. Uma vez, uma passageira deixou uma casca de banana no banco do carro, e eu só percebi depois que ela saiu     ”, recorda.

Outro episódio marcante foi o dia em que sofreu um assalto enquanto trabalhava. O ex-motorista conta que aceitou uma corrida de valor elevado em um dia de pouco movimento, mas acabou sendo ameaçado com uma arma pelo passageiro, que o obrigou a fazer “corridas” para entrega de drogas. “Foi aterrorizante. Quando o homem tirou a arma e colocou na minha coxa, eu só conseguia pensar que aquele poderia ser meu último dia”.  Após o incidente, ele denunciou o caso à Uber, que baniu o usuário, mas a sensação de insegurança nunca desapareceu. 

Além disso, havia o constante custo de manutenção do carro, que tornava o trabalho menos vantajoso do que parecia à primeira vista. “Manter o carro em boas condições era caro. Tinha que trocar o óleo com muita frequência, porque usava o carro para muitas corridas, e o gasto com gasolina e manutenção era bem alto”, relembra. Mesmo sendo responsável por todos esses custos, os ganhos financeiros não reparavam o desgaste físico e emocional. No fim, decidiu deixar o Uber e procurar um emprego formal, voltando a trabalhar sob o regime CLT. 

Apesar de todos os desafios e riscos, ele ainda sente saudades da liberdade que o trabalho como motorista de aplicativo proporcionava. “Era bom poder acordar e decidir se eu queria trabalhar ou não naquele dia. Se eu estivesse cansado, podia simplesmente ficar em casa. E, se quisesse, podia trabalhar até 15 horas por dia. Essa sensação de liberdade era muito boa, mas, infelizmente, não dava mais para sustentar minhas necessidades financeiras”, conclui. 

Por volta das 16h, de uma quarta-feira ensolarada e com temperatura acima do normal para o mês de outubro, solicito uma corrida da minha casa até a Universidade. Escolho um Uber Comfort, e assiná-lo a opção “Prefiro conversar” torcendo para que o motorista topasse a entrevista. Nossa corrida durou pouco mais de 8 minutos. O motorista preferiu não ser identificado. 

Nascido na região Nordeste do Brasil, o motorista de 63 anos, após trabalhar durante anos em transportadora na cidade de São Paulo, se mudou com a família para uma famosa cidade litorânea de Santa Catarina. O motorista reforça que, ao chegar no Sul, não queria ser empregado e achou nos aplicativos de transporte uma solução. 

Motorista de aplicativo há quatro anos, considera que trabalhar em Santa Catarina é relativamente seguro. Ele destaca que, ao contrário de outras regiões do país, como São Paulo e Rio de Janeiro, ele raramente vê casos de roubo ou violência, o que lhe proporciona certa tranquilidade. “Aqui eu me sinto seguro. Não tem muita roubalheira, e isso faz diferença”, afirma. 

No entanto, ressalta que essa segurança é apenas um aspecto do trabalho. Ele aponta uma grande vulnerabilidade dos motoristas, especialmente no que diz respeito à falta de proteção oferecida pelas plataformas. “Se eu me machucar, ou se meu carro quebrar, para as plataformas eu sou nada”, diz ele, referindo-se à ausência de um suporte efetivo em situações de acidente ou problemas de saúde. A reportagem tentou entrar em contato com a plataforma Uber, mas não obteve sucesso. Apesar de ter mais de 60 anos, ainda não é aposentado e paga o INSS por conta própria, tentando garantir alguma forma de previdência, mas reconhece que muitos motoristas não fazem o mesmo e ficam ainda mais expostos.  

Ele costuma fazer corridas na cidade em que mora, no litoral catarinense, entretanto, aceitou uma corrida para a cidade de Blumenau transportando uma família para a Oktoberfest. Durante a viagem, a família questionou se ele não teria interesse em levá-los de volta à noite. O motorista topou e aproveitou para fazer corridas em Blumenau. 

Ambos compartilham que, apesar de algumas vantagens, como a flexibilidade de horários, a uberização impõe ao trabalhador uma responsabilidade quase total sobre os custos operacionais do serviço, o que inclui manutenção do veículo, combustível, e o risco de acidentes. Essa percepção reforça a crítica comum à uberização: enquanto o trabalhador é responsável por todos os riscos e custos do trabalho, as plataformas digitais mantêm o controle e retêm a maior parte dos lucros, deixando os motoristas à margem, sem direitos básicos como auxílio-doença ou cobertura de acidentes. 

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PLATAFORMATIZAÇÃO 12/2024

Segundo um estudo recente do IBGE, o Brasil possui cerca de 2,1 milhões de trabalhadores de plataformas digitais. Esses trabalhadores, em sua maioria, atuam em atividades como entregas e transporte de passageiros, como é o caso dos motoristas de aplicativos. Esse número evidencia o impacto crescente da plataformatização no mercado de trabalho, especialmente em um contexto de desemprego e informalidade. Dados da pesquisa apontam que os motoristas plataformizados, trabalham em média sete horas a mais por semana e não recebem o equivalente. Além de 43,9% dos não plataformizados contribuem para o INSS, contra 23,6% que estão na plataforma.

Buscando soluções contra a crise trabalhista, o PL 12/2024, conhecido como “Projeto de Lei da Platformatização”, visa regulamentar o trabalho realizado por meio de plataformas digitais no Brasil, abordando aspectos como direitos trabalhistas, definição da relação entre plataformas e trabalhadores, e a transparência nas operações das empresas. O projeto propõe garantir direitos básicos aos trabalhadores, como acesso a férias e seguro-desemprego, além de regular as taxas e comissões cobradas pelas plataformas, visando assegurar uma remuneração mais justa. Também inclui mecanismos de fiscalização e penalidades para descumprimentos, respondendo à crescente preocupação com as condições de trabalho e a precarização enfrentadas por esses profissionais no setor. Anterior a esse projeto, outros foram propostos, mas não viraram lei. 

Entretanto, ao longo de 2024, motoristas de todo o Brasil vem protestando contra o PL. Para os representantes da classe, o projeto acaba favorecendo as empresas donas dos aplicativos. Como exemplo, o valor hora de R$32,00, proposto no projeto, não cobriria os custos básicos. 

PARA O FUTURO, O QUE ESPERAR? 

A uberização do trabalho representa uma nova fase no capitalismo, onde a exploração do trabalhador é disfarçada por uma aparente autonomia. Motoristas vivem uma rotina cansativa, marcada por uma insegurança financeira e pela falta de proteção social. Conforme apontado pela professora Cláudia, o controle das plataformas digitais sobre o trabalho é cada vez maior, e a liberdade prometida é, na verdade, um engano que obriga os trabalhadores a se submeterem a jornadas longas e imprevisíveis para garantir uma renda mínima. É necessário que se debata e se busquem soluções para proteger esses trabalhadores, que, apesar de serem peças fundamentais no funcionamento desse novo sistema, estão cada vez mais vulneráveis. 

Por: Anna Coirolo

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