Algemas do século XXI: O trabalho escravo moderno em Santa Catarina

Setores como a agricultura, a construção civil e a indústria têxtil concentram o maior número de casos, revelando um problema enraizado e que exige ações

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Gravação por Isabela Gorges

Santa Catarina, com suas praias de águas cristalinas, montanhas e a exuberante natureza que abraça os visitantes, encanta milhares de pessoas todos os anos. É um estado que exala prosperidade e beleza, um paraíso que promete bem-estar. No entanto, por trás dessa paisagem pura, encontramos uma realidade sombria: a persistência do trabalho escravo moderno. Enquanto muitos turistas caminham pelas areias das praias, outros lutam para sobreviver em condições análogas à escravidão. Essa dualidade trágica revela o lado oculto do paraíso catarinense, onde os mais vulneráveis sofrem nas sombras do desenvolvimento econômico.

A imagem paradisíaca de Santa Catarina esconde essa exploração. Mesmo que a escravidão tenha sido oficialmente abolida no Brasil em 1888 através da Lei Áurea, que libertou mais de 700 mil escravizados, a exploração da mão de obra em condições degradantes persiste, especialmente em áreas rurais e em setores com demanda de trabalho manual. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mais de 3.00 vítimas do trabalho análogo a escravidão foram resgatadas em 2023 em Santa Catarina.

Trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão com proteção improvisada/Foto: Ministério Público do Trabalho

Trabalhadores, atraídos por promessas de salários justos e condições melhores, se deparam com uma realidade diferente que os prende em práticas de exploração com jornadas exaustivas, moradias inadequadas e salários insuficientes para garantir as necessidades básicas. No Código Penal Brasileiro, artigo 149, trabalho análogo a escravidão “é caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto”.

Segundo dados compilados pelo Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas de 2022, condições degradantes estão principalmente presentes em setores como a construção civil, a indústria têxtil e a agricultura, sendo essa atividade com maior número de trabalhadores libertados: em 2023, mais de 500 pessoas foram resgatadas de situações análogas à escravidão nas plantações de café e cana-de-açúcar no Brasil.

Número de pessoas resgatada por ano no Brasil/Arte: Isabela Gorges

Maiko Spiess doutor em Política Científica e Tecnológica e professor na Universidade Regional de Blumenau (FURB), destaca que o problema não é exclusivo de Santa Catarina, mas reflete uma realidade nacional. “Essas práticas persistem devido à precarização extrema do trabalho e à mentalidade dos empregadores, somada à falta de condições de cidadania para os trabalhadores”, afirma Spiess. Segundo ele, o lento progresso social contribui para que essas situações ainda ocorram, mesmo com o avanço das políticas de fiscalização.

Casos recentes de trabalho escravo no estado

A exploração da mão de obra em Santa Catarina tem sido documentada por operações de fiscalização nos últimos anos:

No ano de 2022, 49 pessoas foram resgatadas em plantações de maçã em São José, Santa Catarina, em condições insalubres, e confirmaram ter pago pela alimentação, moradia e deslocamento durante os dias de serviço, além terem pago R$ 650 pela passagem de ônibus do Maranhão até Santa Catarina.

Em maio de 2023 uma ação fiscal do MTE resgatou 15 pessoas de condições degradantes, de uma área rural localizada em Urubici. Os trabalhadores foram encontrados alojados em locais impróprios, sem acesso a água em condições de consumo, jornada exaustiva, além da falta de equipamentos de proteção individual.

Já em novembro do mesmo ano uma inspeção em Ituporanga encontrou 17 trabalhadores em situação de trabalho análogo a escravidão em uma plantação de cebola. Além do trabalho sem carteira assinada, foram encontrados alojados em um ambiente precário, sem condições de conforto, higiene, segurança e água de qualidade.

Alojamento improvisado em resgate de trabalhadores em situação análoga à escravidão, em Ituporanga, Santa Catarina/Foto: Ministério Público do Trabalho

Mais recentemente, em outubro de 2024, uma empresa localizada em Brusque, Santa Catatarina, foi submetida a uma fiscalização após denúncias de trabalho análogo à escravidão. As investigações, iniciadas pelo Ministério Público de Santa Catarina, mostraram condições de trabalho inadequadas, com trabalhadores sem acesso à água potável e colchões apropriados. O MTE está atualmente avaliando a situação para determinar as medidas, que podem incluir indenizações e a inclusão da empresa na “Lista Suja”, que reúne empregadores que exploram trabalhadores em condições análogas à escravidão.

Segundo o advogado João Valença “os principais desafios estão na fiscalização. Há falta de recursos e pessoal para realizar inspeções frequentes. Muitas vezes, os trabalhadores não sabem a quem recorrer ou têm medo de denunciar. Isso tudo complica o trabalho de responsabilizar as empresas envolvidas.”, expõe.

Lista suja do trabalho escravo no Brasil

Imagem destacando a ‘Lista Suja’, cadastro de empresas flagradas utilizando trabalho análogo à escravidão no Brasil/Arte: gov.br

Conhecido como “Lista Suja“, o cadastro de empregadores que estão ligados a submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão é um dos principais instrumentos de combate ao trabalho escravo do Brasil. O cadastro é atualizado semestralmente e durante uma fiscalização da Inspeção do Trabalho, cada irregularidade trabalhista encontrada resulta em autos de infração contra os empregadores. Cada auto gera um processo administrativo, onde os empregadores têm o direito de se defender, garantindo seus direitos de defesa em duas etapas.

Na atualização publicada em abril de 2024, pelo MTE, por meio da Secretaria de Inspeção do Trabalho, foram incluídos 248 empregadores no cadastro, sendo a maior inclusão já realizada na história do Brasil. Na última atualização publicada pela MTE em outubro, consta 176 novos nomes, incluindo o nome do cantor Leonardo e com destaque para atividades como produção de carvão vegetal e criação de bovinos.

Dentre os 176 nomes publicados em outubro, 16 empregadores citados são catarinenses, sendo as empresas citadas de Rio do Sul (2), Bom Retiro (2), Ituporanga (4), Urubici, São Bento do Sul, Imbuia, Criciúma, São Joaquim (3) e Alfredo Wagner (5).

“A inclusão na Lista Suja é um marco legal que classifica oficialmente uma empresa como exploradora de trabalho escravo”, explica Valença. “Isso traz impactos reais, como a impossibilidade de obter crédito em bancos públicos e uma reputação manchada, o que pode afastar clientes e parceiros. Para empresas que dependem de certificações éticas, especialmente no setor agrícola, a inclusão na lista pode ser devastadora.”

Apesar disso, “estar na Lista Suja não necessariamente impede que um empregador que utilizou mão de obra escrava continue fechando novos negócios. Ainda assim, é uma forma do governo mostrar que essas pessoas não respeitam os direitos humanos”, afirma Mariana Passuello, jornalista premiada pelo trabalho investigativo “Camadas Invisíveis: o tráfico de pessoas no cultivo de cebola em Santa Catarina”.

Fatores que colaboram para a exploração

O trabalho escravo moderno está associado a uma série de motivos que vão desde à vulnerabilidade social, precariedade e impunidade conforme o Ministério Público Federal (MPF) e o Portal da Câmara dos Deputados. Além de possuir relação com a informalidade e com o desemprego, segundo o chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), o auditor fiscal do Trabalho, Maurício Krepsky.

Segundo o programa “Escravo, nem pensar!”, 94% das pessoas resgatadas de situações de trabalho escravo no Brasil são homens. Refletindo a predominância de atividades que exigem força física, como aquelas em setores como agropecuária e construção civil, nos quais os aliciadores frequentemente buscam homens e jovens.

Durante sua investigação sobre o tráfico de pessoas no cultivo de cebola, Mariana Passuello observou um padrão entre as vítimas do trabalho escravo. Segundo ela, “a maioria das pessoas encontradas em condições de trabalho escravo no cultivo de cebola são homens, geralmente entre 18 e 40 anos, e muitos não têm escolaridade, sendo analfabetos”. Passuello explica ainda que os aliciadores, conhecidos como “gatos”, recrutam esses trabalhadores pela força física exigida pelo trabalho braçal, o que os torna ainda mais vulneráveis a esse tipo de exploração.

Por outro lado, as mulheres também são vítimas da prática, embora representem 6% do total de resgatados no Brasil. Elas são comumente encontradas em atividades na zona rural, no setor têxtil, além de ocupações com alto índice de subnotificação, como o trabalho doméstico e a exploração sexual.

Entre 2003 e 2022, aproximadamente 2.500 mulheres foram resgatadas de situações de trabalho escravo, das quais 76% (cerca de 1.907) estavam empregadas no setor rural. Essas trabalhadoras estavam envolvidas principalmente em atividades agropecuárias, mas também em setores como garimpo, extrativismo e mineração. A grande maioria delas sendo preta ou parda e possuía baixa escolaridade, segundo dados do Programa Seguro-Desemprego registrados de 2003 a 2023 indicam que, entre os trabalhadores libertados, 61,5% são analfabetos ou não concluíram nem o 5º ano do Ensino Fundamental.

A especialista no combate ao tráfico de pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime e jornalista, Heloisa Greco, que elaborou o relatório sobre as tendências do tráfico de pessoas no Brasil, que reúne dados de 2017 a 2020 diz que a pobreza e o desemprego são as principais razões para pessoas se tornarem vítimas do crime. “Condições econômicas precárias e falta de perspectivas de emprego podem levar as pessoas a aceitarem ofertas degradantes, que mais tarde acabam por se revelar uma forma de exploração. Muitas vezes, é a única opção de sobrevivência que encontram”, enfatiza.

Maiko Spiess também aponta que os fatores socioeconômicos que levam à vulnerabilidade dos trabalhadores incluem a privação material e a falta de alternativas econômicas viáveis. “Quem é muito pobre, quem passa fome, tem um horizonte de escolhas muito reduzido”, explica.

Além disso, conforme apontado também pelo programa “Escravo, Nem Pensar!”, a disparidade racial é uma característica marcante entre as vítimas do trabalho escravo no Brasil. Aproximadamente 66% dos resgatados são pessoas negras, o que representa cerca de 14.799 indivíduos. Desses, 60% estavam empregados em atividades agropecuárias, enquanto os demais eram forçados a trabalhar no desmatamento, carvoarias, construção civil, extrativismo vegetal, reflorestamento e garimpo.

Embora o critério racial não seja mais determinante na escravização atual, como acontecia no período colonial e imperial, a população negra continua sendo a mais afetada.

Escravo, Nem Pensar!

Organizações têm atuado na função de denúncias, prevenção e resgate de trabalhadores em situação de escravidão. Um exemplo disso é o programa educacional da Repórter Brasil“ Escravo, Nem Pensar!“, que previne o trabalho escravo por meio de atividades educativas em comunidades rurais e escolas desde 2004. Esse programa oferece capacitações para professores, líderes comunitários e servidores públicos em regiões rurais e vulneráveis, promovendo o conhecimento dos direitos trabalhistas e a identificação de condições de trabalho degradantes. O programa já capacitou cerca de 150 mil pessoas em 56 municípios de sete estados.

Cartaz do programa ‘Escravo, Nem Pensar!’ destaca a formação em direitos humanos para a prevenção do trabalho escravo contemporâneo/Foto: Escravo, nem pensar!

Além de ações educativas, o programa também se dedica à produção e divulgação de conteúdo sobre o tema do trabalho escravo, buscando aumentar a conscientização pública. A elaboração de metodologias educacionais voltadas para os direitos humanos e a participação ativa em fóruns e articulações políticas são outras estratégias de combate adotadas pela organização. O trabalho envolve o fomento de parcerias entre entidades que atuam no combate ao trabalho escravo, ampliando a eficácia e o alcance das iniciativas.

Além disso, o avanço tecnológico tem complementado ações de combate e facilitando o registro de denúncias anônimas por trabalhadores e cidadãos. O MPT por exemplo, dispõe o site e o aplicativo “MPT Pardal”, que permitem que as denúncias sejam registradas sem a necessidade de identificação. Desde a sua criação em 2015 o aplicativo do MPT que ajuda a flagrar irregularidades trabalhistas já recebeu mais de 11 mil denúncias.

Confira, a seguir, os canais disponíveis para denunciar casos de trabalho análogo à escravidão:

Canais de denúncia para combate do trabalho análogo a escravidão/Arte: Leticia Roeder

Por: Isabela Gorges

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