Entre peças descartadas em lixões e movimentos por consumo consciente, o setor da moda vive um dos maiores dilemas da sua história
A moda tem desempenhado um papel muito além do vestir, ela surge como uma forma de comunicação visual, refletindo culturas, status sociais, valores e mudanças comportamentais ao longo do tempo. Mais do que seguir tendências, a moda sempre esteve ligada à construção de identidade e pertencimento, seja em rituais antigos, nos salões da alta costura ou nas ruas das grandes cidades. Ela diz quem somos, o que pensamos e até onde queremos chegar.
Com o passar do tempo, a moda deixou de ser privilégio de poucos e passou a integrar o cotidiano das massas. Segundo o estudo “A evolução e democratização da moda moderna: de Frederik Worth à fast-fashion de Karl Lagerfeld”, do autor António Machuco Rosa, publicado na plataforma SciELO, “E hoje geralmente aceite que a evolução da moda durante o século XX pode ser descrita como um processo de ‘democratização”, explica. Essa democratização, embora positiva em muitos aspectos, também trouxe desafios. O consumo acelerado, impulsionado por um sistema que valoriza o novo o tempo todo, gerou impactos profundos na forma como produzimos, compramos e descartamos roupas. Nesse cenário, surgem movimentos como o slow fashion, que resgatam o valor da moda como arte, cultura e responsabilidade.
Segundo o jornal CNN Brasil, atualmente, o Brasil descarta mais de quatro milhões de toneladas de resíduos têxteis por ano, representando cerca de 5% de todos os resíduos produzidos no país. E a revista Veja afirma que, globalmente, estima-se que 92 milhões de toneladas de roupas sejam desperdiçadas anualmente, e esse número pode dobrar até 2030. Além do impacto ambiental, a produção acelerada compromete a qualidade das peças e perpetua condições de trabalho precárias em diversas partes do mundo.
No entanto, a indústria da moda passou por uma transformação radical nas últimas décadas, impulsionada pelo consumo acelerado e pela produção em larga escala. Esse modelo, conhecido como fast fashion, permite que as tendências das passarelas cheguem rapidamente às lojas, mas a um custo ambiental e social significativo.
Em contraste, o movimento slow fashion surge como uma resposta a esse modelo, resgatando a moda como arte, cultura e responsabilidade. Enquanto o fast fashion prioriza velocidade e baixo custo, o slow fashion valoriza a durabilidade, a produção ética e o impacto ambiental reduzido. A alta costura, por sua vez, representa o extremo oposto da produção em massa: peças únicas, feitas sob medida, com materiais de alta qualidade e processos artesanais rigorosos.
Diante desse cenário, a indústria da moda enfrenta um dilema: continuar impulsionando o consumo desenfreado ou adotar práticas mais sustentáveis? A escolha não depende apenas das marcas, mas também dos consumidores, que têm o poder de transformar o mercado por meio de decisões mais conscientes.
Da alta costura ao surgimento do fast fashion
A alta costura ou haute couture, é uma moda de luxo exclusiva da França que surgiu em meados do século XIX, cada peça é feita essencialmente sob medida com os melhores materiais do mercado. Em 1945, o termo da alta costura tornou-se próprio da França, que inclusive é protegido por lei por uma comissão específica que hoje controla e classifica este modelo. Para que uma marca seja classificada como alta costura e se torne uma casa da moda (as maisons são referências às grandes e famosas marcas, como Chanel), é necessário cumprir uma série de pré-requisitos, como por exemplo, apresentar duas coleções por ano, cada peça deve ser única e sob medida, confeccionada por mais de 20 profissionais, entre outras.



Alguns looks da coleção Chanel Alta Costura Primavera-Verão 2025
Após a Segunda Guerra Mundial e o surgimento da crise econômica, a haute couture enfrentou grandes desafios. De acordo com Mara Rubia, doutora em história, a questão financeira contribuiu para o declínio da alta costura e resultou na queda de sua exclusiva clientela. Mas a prioridade sempre foi manter a imagem da elegância em Paris e a sobrevivência da alta-costura e com isso surgiram peças exclusivas com valores mais acessíveis, para atrair mais clientes. Em detrimento desses modelos menos exclusivos, clientes e costureiros não estavam satisfeitos porque “as coleções de “preços módicos” comprometiam a imagem dos criadores e de seus consumidores, que viam sua “arte” e suas aquisições vulgarizadas com os modelos mais “populares”. Afinal, as coleções “bom e barato” comprometeram o que distinguia a Haute-Couture: a representação de privilégio, exclusividade e poder”.
Devido ao surgimento de uma nova demanda a partir da alta costura, viu-se a necessidade de adaptar a haute couture, e assim surgiu o prêt-à-porter. Essa moda consiste em roupas produzidas com maior diversidade e acessibilidade, modulando toda a sociedade francesa “seu surgimento pode ser analisado a partir de seu papel na representação de Paris como capital da moda” afirmou Mara Rubia. Ainda de acordo com seu artigo (Prêt-à-Porter, discussões em torno de seu surgimento e relação com a Alta-Costura francesa), o prêt-à-porter assegurou a continuidade do poder através da aparência, além de permitir que os estilistas explorem a estética conceitual em suas criações, dando um novo papel a alta costura.
A moda “pronto para vestir” realiza desfiles próprios para divulgar as peças de coleção que, em sua maioria, abrange duas estações por temporada. Esses desfiles acontecem em diversas partes do mundo, mas principalmente em Nova York, Londres, Milão e Paris. Segundo a colunista Giulia Coronato, “algumas marcas estão aderindo a um método um pouco diferente, disponibilizando as coleções em outras épocas do ano com intuito de melhorar a qualidade e levar consumo consciente e sustentabilidade em suas confecções”.



Alguns looks da coleção Dior prêt-à-porter Primavera-Verão 2025
Em resposta à uma moda acessível e rápida, surgiram as fast fashions que se inspiram nas tendências apresentadas nos desfiles de alta haute couture e prêt-à-porter, criando suas versões em massa que são disponibilizadas rapidamente. Apesar da forte ligação entre o modelo de produção em massa e a alta costura, elas se contradizem uma com a outra.
O barato que sai caro: a indústria fast fashion
Quem nunca teve um cinto de strass brilhante, daqueles em que as pedrinhas caíam a cada passo ou se arriscava com uma calça de cintura baixa que desafiava as leis da gravidade? Um “outfit” que poderia ser digno de um videoclipe da Britney Spears nos anos 2000: top justo, barriga de fora, minissaia plissada, bota de cano alto e aquela vibe de pop star que influenciava guarda-roupas ao redor do mundo.
A verdade é que a moda tem esse poder. Ela dita, muda, volta, se reinventa e a sociedade, de alguma forma, segue esse ciclo. Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, moda é o “uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo e resultante de determinado gosto, ideia, capricho e das interinfluências do meio”.
Em outras palavras, a moda é mutável por natureza. E, acompanhando essas transformações, surgem modelos de produção que tentam dar conta da velocidade das tendências, entre eles, o fast fashion.
De acordo com Lisa McNeill e Rebecca Moore, especialistas em marketing e comportamento do consumidor da Universidade de Otago, “o fast fashion é uma estratégia de negócios centrada em uma cadeia de suprimentos acelerada e eficiente, que produz moda em tempo recorde para atender ao desejo imediato do consumidor”, explicam as especialistas.
Segundo Daniela Delgado, professora de Pesquisa de Moda e Estudos da Imagem da UNIBAN e consultora de moda, o conceito de fast fashion começou a se consolidar no final dos anos 1990. Foi nessa época que grandes varejistas do Reino Unido, como New Look e George, passaram a enfrentar forte pressão para oferecer preços mais baixos e maior variedade de produtos.
No artigo publicado em 2004 pelos pesquisadores Martin Bruce, Lesley Daly e Nigel Towers, intitulado “Lean or agile: A solution of supply chain management in the textiles and clothing industry”, essas empresas transferiram suas produções para países asiáticos, onde os custos eram menores, adotando estratégias para reduzir o tempo de produção, aumentando a capacidade de resposta ao consumidor.
O cenário mudou ainda mais com a chegada da internet e a popularização dos desfiles de moda. Quem vê uma arara recheada de peças inspiradas nas passarelas internacionais ou o “Get ready with me” no feed dos grandes influenciadores digitais, com preços que cabem no bolso, dificilmente imagina o que acontece nos bastidores até que aquela roupa chegue à loja.
Segundo o artigo “Fast fashion is not a trend“, publicado pela blogueira de moda estadunidense Sydney Mintles em 2008, a divulgação das imagens das passarelas em sites e revistas deixou mais claro o processo criativo, dando ao público acesso ao que antes era restrito a compradores e especialistas. O resultado foi um consumidor mais informado e mais exigente.
E as empresas de produção não deixaram de se basear nessa opinião do público. Para as mestres em Design e Marketing, Ereany Refosco e Josiany Oenning, e para Manuela Neves, doutora em Engenharia Têxtil, em seu estudo publicado em 2011 “Da Alta Costura ao Prêt-à-porter, da Fast Fashion a Slow Fashion: um grande desafio para a Moda”, “as empresas acompanham as mudanças e anseios dos consumidores para adequarem suas ofertas e maximizarem as vendas”, revelam.
Em resposta a esse novo comportamento, marcas como Zara, H&M e Topshop começaram a lançar versões das tendências das passarelas em apenas três a cinco semanas, como revela o estudo de Liz Barnes e Gaynor Lea-Greenwood, publicado em 2006, “Fast fashioning the supply chain: Shaping the research agenda”.

A Zara é reconhecida por produzir tendências em massa.
A partir daí, o modelo fast fashion deixou de depender apenas da previsão de tendências e passou a acompanhar em tempo real o comportamento do consumidor. Essa agilidade é fundamental. Em um estudo de 2004, Martin Christopher, Robert Lowson e Helen Peck, no artigo “Creating agile supply chains in the fashion industry“, explicam que responder rápido às mudanças do mercado abre margens de lucro maiores e diminui o risco das empresas ficarem com estoques encalhados.
É uma estratégia para um mercado onde o consumo é cada vez mais impulsivo e o ciclo de vida dos produtos, cada vez mais curto. Atualmente, segundo a revista Forbes, uma peça de roupa fast fashion é usada, em média, menos de cinco vezes antes de ser descartada.

A Shein é uma das grandes empresas de fast fashion.
O custo oculto por trás da moda barata? Um sistema rápido, descartável e muitas vezes insustentável para o planeta, para os trabalhadores e para os próprios consumidores. Para Ana Clara, estudante do curso de Moda no terceiro semestre da Universidade Regional de Blumenau (FURB), os pontos negativos do fast fashion são muito comentados pelos profissionais e estudantes da área.
“O fast fashion é bem prejudicial em vários pontos, com alguns pontos positivos. Ele prejudica principalmente o meio ambiente. Muitos resíduos têxteis acabam indo para lixões, rios. Também fomenta o consumo excessivo, por ser tendência em alto volume. O fast fashion está aos poucos se tornando um ultra fashion”, revela a estudante.
Fast Fashion é cafona
O impacto ambiental da moda rápida é preocupante, porém aos poucos o consumo consciente vem ganhando mais espaço.
A apreensão com a degradação do meio ambiente não é de hoje, há mais de 50 anos existem movimentos indo e vindo para tentar amenizar os impactos que o consumo desenfreado tem causado no meio ambiente. São toneladas de roupa que se transformam em montanhas de descarte.
Um exemplo é o lixão de roupas encontrado no deserto do Atacama, no norte do Chile. O “cemitério de tendências” abriga sapatos, camisetas, casacos, vestidos, gorros, trajes de banho e outras inúmeras peças do que já foram “looks do dia”. A cada ano, segundo a BBC, das 59 mil toneladas de peças de roupa importadas, aproximadamente 40 mil acabam no lixo.
A jornalista Fernanda Paúl publicou na BBC Mundo uma reportagem chamada Lixo do mundo: O gigantesco cemitério de roupas usadas no deserto. Para escrever essa reportagem a jornalista e sua equipe foram até a região Zona Franca de Iquique, mais conhecida como Zofri no Chile. Ela destaca que: “Entrevistar qualquer pessoa para essa reportagem foi difícil porque ninguém quer se responsabilizar pelas montanhas de roupas do Atacama”. Na reportagem, a jornalista conversa com Edgard Ortega, responsável pela área de meio ambiente no município de Alto Hospicio, ele explica que “ao menos 60% [do que se importa] é resíduo ou descartável e é isso que forma os montes de lixo”.


Apesar de trazer cada vez mais impactos como esse ao meio ambiente, nos últimos 50 anos, existem iniciativas não governamentais emergentes, trazendo outro olhar e transformando em moda o consumo consciente.
Uma das iniciativas mais antigas é o movimento Hippie, que surgiu entre os anos 1960 e 1970, que era contra o consumo desenfreado e valorizavam a sustentabilidade e reciclagem, dando mais valor às peças feitas à mão, roupas e acessórios vintage, ou compradas em brechó.
O blog “Femme Verso” traz alguns estilistas que defendem o “Hippie Chic” e o “Boho Chic” que virou tendência recentemente. “Donatella Versace, embora conhecida por seu glamour ousado, também já incorporou elementos boho e hippies em coleções da Versace, mostrando que o estilo pode ser reinterpretado com sofisticação e sensualidade atemporal”.
Outros movimentos também questionaram o consumo ao longo dos anos, como o movimento Punk nos anos 1970 e mais recentemente em 2013, surge o movimento Fashion Revolution Brasil este tem promovido reflexões profundas sobre quem faz nossas roupas, em que condições e com que consequências. No Brasil, o Fashion Revolution atua com força nas redes sociais, publicando textos que incentivam o consumo consciente, o slow fashion e o papel do consumidor como agente político.
Outro movimento que ganhou força entre as décadas de 1970 e 1980 foi o Reuse, que faz parte de uma abordagem mais ampla de sustentabilidade conhecida como os 5Rs: Repensar, Recusar, Reduzir, Reutilizar e Reciclar.
Natasia Tamis Vieira, é dona do brechó Caos, que fica em Blumenau, trabalha com esse tipo de comércio há sete anos. Para ela o movimento reuse faz mais sentido “você reusar algo que você acha que faz sentido, você vai no brechó, uma peça vintage por exemplo, você não encontra mais com o mesmo tecido e a mesma estampa e com a qualidade.” para ela é difícil encontrar algo de qualidade superior após o fast fashion.
Para Natasia está tudo bem você comprar uma peça nova, mas “desde que você goste e use”, sem exagerar comprando várias peças do mesmo modelo e não as deixando guardadas no guarda-roupas para nunca mais usar.
“Tem muita cliente nova que vem aqui e é a primeira vez que vem no brechó e a gente está em 2025”
Natasia, Dona do Brechó Caos
Isabella Zaupa é empreendedora e fundadora da Izaupa, desenvolve e vende seus próprios produtos e tem como foco peças básicas. Na visão dela, o fast fashion é cafona. “Você estar em um ambiente que propõe se vestir bem, se maquiar e se arrumar. Chegar no rolê e tu estar com a mesma peça que várias outras pessoas estão vestindo, eu acho extremamente cafona” revela. Para ela o fast fashion não significa economizar, mas que “se quer comprar de fast fashion, compre uma roupa básica”, enfatiza.
De acordo com a estudante de moda Ana Clara as “produções que podem quebrar o fast fashion, seria a substituição por uma moda circular como brechós ou ateliês com roupas sob medida”.
Em sua essência, a moda sempre se manifestou como uma poderosa forma de expressão, tanto coletiva quanto individual, servindo de espelho para épocas, comportamentos e revoluções. Contudo, essa mesma indústria carrega as complexas contradições de um sistema que, muitas vezes, falha em acompanhar o ritmo da responsabilidade ambiental e social. A transição da exclusividade artesanal para a produção em massa gerou um paradoxo: enquanto a alta-costura preserva a tradição e a qualidade e durabilidade das peças, o fast fashion impulsiona o consumo a custos frequentemente invisíveis, mas inegavelmente reais.
O futuro da moda dependerá, em grande parte, da forma como a sociedade, a indústria e os governos lidarão com os desafios prementes da sustentabilidade. Conceitos como a moda circular, o reaproveitamento de materiais e o consumo consciente deixam de ser um nicho para integrar as discussões globais mais amplas sobre o clima, o trabalho e a cultura. Ao reconhecer os erros do passado e enfrentar as contradições do presente, é possível costurar um novo caminho – um futuro onde vestir-se não signifique apenas seguir uma tendência, mas, acima de tudo, fazer parte de uma mudança verdadeiramente significativa.
Para assistir a entrevista das empreendedoras Isabella, Natasia e Arthur do lobo trajado na íntegra, acesse aqui.
Por: Anabloo, Ariel Baratieri, Luiza Moraes Gonçalves e Talita Kehl