Ilhados e abandonados, animais também sofrem com as enchentes

Luta pela preservação ambiental segue até os dias de hoje

Nas ruas do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, as marcas das enchentes e de outros desastres naturais que assolaram a região em diferentes momentos da história permanecem enraizadas na memória de muitos moradores. Além das vidas humanas que foram perdidas e do prejuízo material, muitos animais morreram e áreas inteiras de floresta também foram impactadas pelas águas. 

Nos anos de 1983, 1984 e 2008, cenas de animais sendo arrastados pelas águas se tornaram comuns em meados de outubro. Cachorros, gatos, cavalos, porcos e muitas outras espécies de pequeno e grande porte da vida silvestre ficaram ilhados. Muitos morreram.

Cachorro ajuda a aquecer dono após ser resgatado que foi arrastado pela enchente. Foto: Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina/Divulgação/Nosso Tal

Lauro Bacca, naturalista e ambientalista, lembra da enchente de 1983 como se fosse ontem. Ele estava em uma viagem até Belém (PA), quando recebeu a notícia de que Blumenau estava debaixo d’água. Aquela foi a segunda maior enchente desde 1911 e Lauro encontrou o caos ao retornar. “Era difícil atravessar a cidade e chegar em nossas casas”, conta. 

Na época, ele trabalhava como secretário de Meio Ambiente do município de Blumenau e, em momentos como esses, era comum pensar apenas nos impactos relacionados aos seres humanos, mas Lauro testemunhou cenas que afetaram também a vida ambiental.  

“Assim como nós sofremos, a fauna também sofre, e às vezes, ela só tem aquela matinha na margem no rio. Quando o rio sobe, não sobra nada para eles se refugiarem, só as ruas e as vias públicas, mas até elas estão tomadas pela água”, diz. 

Ele conta que, na enchente de 1984, uma cotia apareceu no Hospital Santo Antônio, na margem do Itajaí-Açu. Lauro e sua equipe foram chamados e levaram o animal dentro de uma caixa de papelão até o parque ecológico Spitzkopf.  

“No caminho a cotia começou a pular no bagageiro do carro, dentro da caixa de papelão. Acabou arrebentando a caixa e, de repente, eu me vi com uma cotia passando pelo meio dos meus pés, entre os pedais do acelerador e do freio. Fechei os vidros do carro para ela não pular para fora e levamos até lá. Abrimos a porta e ela saiu, ficando na natureza”, relembra o ambientalista. 

O trabalho de resgate de animais silvestres é importante, principalmente porque a quantidade desses animais na natureza não é tão grande quanto se pensa. Lauro ressalta que, globalmente, os mamíferos selvagens representam apenas 4% da fauna, enquanto 96% são seres humanos ou animais criados pelo homem. “É um dado assustador e mostra até onde chegou o avanço do ser humano sobre a natureza”. 

O resgate aos animais durante os períodos de enchentes, contudo, não era visto como prioridade entre a população. “Tem pessoas que acham que a gente não deveria estar naquele momento ali e nem estar resgatando os animais, que a gente deveria focar nas pessoas”, conta Lucia Westphal, fundadora do Sítio Dona Lucia. 

Uma luta que começou a quatro décadas

O trabalho de resgate de animais da dona Lucia começou com as enchentes em 1983 e, desde então, nunca mais parou. Com o objetivo de salvar e abrigar os animais de rua, ela abriu as portas do seu sítio, que hoje fica localizado na Vila Itoupava, em Blumenau, mas que já teve outros dois endereços.  

Dona Lucia resgata animais desde 1983. Foto: Reprodução

Na época, quando as águas começaram a subir, ela lembra que muitos animais acabaram ficando nas ruas por conta da invasão das águas e por não poderem ser levados aos abrigos com os donos. “Foi um momento muito triste e eu pensei que deveria fazer alguma coisa para abrigar esses animais, muitas pessoas perderam tudo e eles não tinham como manter os seus cachorros. E aí eu pensei: acho que a minha missão de vida vai ser esta”, conta Lucia, que já está há mais de 40 anos nessa luta. 

Ela começou resgatando animais domésticos, mas logo expandiu e começou a cuidar também de animais silvestres e de grande porte, como cavalos. Sem leis ou apoio significativo para a causa animal, persistiu e contou com a ajuda de amigos que compartilhavam a mesma paixão, além da divulgação de boca em boca da população local, em um momento que o acesso fácil a celulares não era disponível. 

Nas enchentes de 2008, Lucia enfrentou um cenário ainda mais desafiador, com muitos animais e áreas rurais afetadas. Ela conta que viu cenas dolorosas de animais de grande porte sufocados pela lama, mas que não havia o que fazer. “Isso é uma coisa que eu gostaria de deletar da minha mente, mas que não dá. Quando dá uma trovoada, tudo aquilo volta”, confessa. 

Entre a tragédia e a lei: quando o mesmo erro se repete 

Algumas das situações que ficaram marcadas na memória de dona Lucia, foram as vezes em que viu cachorros mortos porque estavam presos em correntes e que, por isso, não conseguiam fugir em situações como as enxurradas. 

Atualmente, a Lei Complementar nº 1054, de 3 de junho de 2016, que institui o código de proteção e bem-estar animal no âmbito de Blumenau, prevê que todo proprietário de animal doméstico é proibido de manter os animais presos a correntes ou cabo de aço com tamanho menor de cinco metros ou apertadas, bem como em jaulas, ou gaiolas e similares de dimensões inapropriadas à espécie e ao porte. 

Mais de mil cães são cuidados no espaço. Foto: Iáscara Zultanski

“Mesmo assim, com a lei, você tem a obrigação de soltar ele da corrente, porque a partir de agora, uma vez que a gente chega no local e sabe que é uma área de risco, vê que o animal morreu por conta de um desastre natural e a pessoa não fez nada. Ela vai ser penalizada e nós não vamos deixar passar em branco, porque não tem mais desculpa”, acrescenta Lucia. 

Em outubro de 2023, quatro décadas depois de uma das maiores enchentes que a cidade já passou e com o desenvolvimento significativo da tecnologia, algumas cenas se repetiram. No dia 7 de outubro, dois cachorros morreram afogados por estarem acorrentados durante uma nova enchente em Blumenau, no bairro Velha Grande. 

O caso foi divulgado por voluntários da ONG Diogo Orsi, que foram informados que os tutores dos animais saíram da residência por causa da enchente e deixaram os cachorros acorrentados no local. Além dos dois, também foi encontrada uma cachorra gravemente ferida, que foi levada para atendimento médico, mas que não resistiu às lesões.

Diferentemente de 1983, em 2023 todos os abrigos abertos na cidade para receber as vítimas da enchente, também possuíam espaço para os animais de pequeno porte, como cachorros, gatos e pássaros. Em diversos veículos de comunicação, nos canais de órgãos públicos e nas redes sociais, foram divulgadas orientações para que os tutores não saíssem de suas casas sem os animais de estimação ou que os levassem até algum lugar seguro durante o período das fortes chuvas.

Mais de mil cães são cuidados no espaço. Foto: Iáscara Zultanski

“Não dá para dizer ‘eu não sabia’, porque às vezes a informação vem em até dois ou três dias antes, então tem como se prevenir”, acrescenta Lucia. 

Ela conta que, em 1983 e 1984, os animais resgatados ficavam no sítio, até que as famílias estivessem estabilizadas para irem buscá-los. Felizmente a maioria voltou, mas 20% a 25% dos animais continuavam no local.  

Para ela, um momento curioso foi quando uma cadela teve os filhotes no morro em que hoje fica localizado o Portal da Saxônia, em uma época em que não existiam muitas casas no local. A cachorrinha provavelmente subiu o morro enquanto estava grávida e teve os filhotes durante a enchente. “A gente só soube por conta de um grupo de pessoas que passou por ali. Ela ficou comigo, uma vez que os filhotes foram doados logo depois das chuvas, por quase 21 anos. Eu nunca a doei pelo apego que eu tive, e ela parece ser grata pelo que aconteceu e pela ajuda que teve com os filhotes”, relembra.  

Desastres naturais e a luta pela preservação ambiental 

A flora também não escapa das consequências das enchentes. A vegetação das margens dos rios, chamada de mata ciliar, foi praticamente perdida em 1984 devido à pressão da água no solo, que levou a desbarrancamentos.  

Na época em que era secretário de Meio Ambiente, Lauro comenta que não se falava quase nada em desastres naturais. Hoje, isso virou rotina no dia a dia da área política, ainda mais com os recentes desastres naturais na região, no país e no mundo. Atualmente, políticas públicas de prevenção de desastres naturais estão sendo discutidas e os governos, em todas as instâncias, precisam se preparar para isso.  

“Eu me lembro que, apesar da lei não prever uma série de coisas, a gente procurava, na base do diálogo, conversar com os responsáveis pelos empreendimentos e tentar convencer eles de que algumas medidas deveriam ser tomadas para amenizar isso. Com o supermercado Angeloni no bairro Garcia, a lei permitia que o empreendimento chegasse a 15 metros do rio, mas conseguimos convencê-los a não aterrar até 70 metros”, recorda. 

No entanto, Lauro aponta que, em situações como o ciclone bomba, que derrubou árvores em 2020, surgem oportunidades para a renovação da floresta, proporcionando novos ambientes para uma variedade de espécies que dependem de árvores mortas. 

“No caso do ciclone, foi ruim? Foi, mas essas árvores caídas também ajudaram no surgimento de outras plantas menores que estão ali esperando para crescer e aquelas que caíram servem de ambiente para bichos que vão viver da sucessão ecológica das árvores mortas”, explica. 

A preservação e a manutenção de espécies nativas da região, assim como o crescimento da flora local, também colaboram para a prevenção de desastres naturais. Principalmente quando se fala da proteção das áreas ribeirinhas e da mata ciliar, como evidenciado pela perda significativa de vegetação em 1984 devido às enchentes e desbarrancamentos. 

Nesse contexto, surgem iniciativas que desempenham um papel fundamental para proteger a região e as comunidades, como por exemplo, a preservação do Parque Spitzkopf. Graças ao comprometimento de Udo Schadrack, empresário blumenauense e um dos precursores da defesa do ambiente natural na cidade, o parque se tornou um marco na conservação da natureza.

Udo era filho do Ferdinand Schadrack, proprietário das terras no ribeirão Caetés, que compreendia as matas da quase totalidade da vertente norte do Morro Spitzkopf e proximidades, que antes eram exploradas para extração de madeira. Quando o pai faleceu em 1932, o jovem Udo herdou a propriedade, e a primeira coisa que fez foi parar com a atividade da serraria desenvolvidas nas matas do Spitzkopf.  

Como Udo era envolvido em clubes de excursionistas, ele percebeu que ano após ano a fauna no local diminuía, e assim, logo proibiu também a caça na propriedade. “Ele era um defensor ferrenho do meio ambiente. Então um dia ele publicou um artigo em um jornal, intitulado “Alarma”, em que alertava, que se continuasse a devastação das matas nas cabeceiras do ribeirão Garcia, a partir do momento em que ‘cair uma tromba d’água violenta’, como foi a de Tubarão em 1974, o Garcia poderá ser varrido do mapa”, relembra Lauro. 

Em seu artigo, Schadrack escreveu que “para provar como é sincera a minha fala, eu me disponho a doar ao governo federal a maior parte da minha propriedade, na condição de que o governo faça um Parque Nacional nesta região”. Esse gesto inspirou a Associação Catarinense de Preservação da Natureza (Acaprena) e outros defensores da conservação a lutar por essa causa, que foi além das cabeceiras do Garcia.  

Um fato curioso, mas que reforça a mensagem que Udo Schadrack gostaria de alertar, aconteceu no momento do velório do empresário. Udo morreu em 16 de dezembro de 1983 e, na mesma noite, aconteceu uma das maiores enxurradas na história do vale do Garcia, causando prejuízos e perdas de toda ordem aos particulares e aos cofres públicos de Blumenau. 

As enchentes de Blumenau podem ter deixado cicatrizes na vida de muitas pessoas e na natureza, mas também ofereceram lições sobre a relação entre a humanidade e o meio ambiente. 

Por Morgana Kloth

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