Com pessoal reduzido, médicos relatam que não havia tempo para parar e lamentar as mortes
Nas enchentes de 2008, os hospitais de Blumenau já estavam melhor preparados para o que estaria por vir. Contudo, a realidade foi outra em 1983. Os médicos Josemar Batista de Oliveira e Siegmar Starke tinham pouco menos de 30 anos e haviam acabado de se formar em medicina quando foram colocados num dos maiores desafios da carreira: liderar hospitais durante os desastres.

Siegmar tinha se formado no ano anterior e, em março de 1983, já trabalhava no Hospital Santa Catarina. Em julho, antes de a cidade ficar coberta de água, o médico cardiologista havia sido escalado para um plantão, mas o que deveriam ser apenas 24 horas, se tornaram cinco dias de muito trabalho.
Ele conta que logo nos primeiros dias, o hospital ficou sem energia elétrica, sem água potável e, aos poucos, a comida também ia ficando escassa. Com um longo silêncio antes de relatar o acontecimento, o médico contou que durante o período que ajudou a liderar o hospital, alguns óbitos aconteceram, já que havia pacientes que precisavam de aparelhos para sobreviver, mas sem a energia elétrica, não teria como fazê-los funcionar.

Com um longo silêncio antes de relatar o acontecimento, o médico contou que durante o período que ajudou a liderar o hospital, alguns óbitos aconteceram, já que havia pacientes que precisavam de aparelhos para sobreviver, mas sem a energia elétrica, não teria como fazê-los funcionar.
“Alguns dos corpos transportávamos com bateira e então eles eram enterrado nos locais certos, mas alguns, dos quais os familiares eram de longe, precisavam ser enterrados no hospital mesmo. Houve até um momento em que precisamos pedir para os soldados que estavam lá, para fazer uma cova para enterrar o corpo de uma família muito religiosa. Lembro que fizemos uma cerimônia de despedida para eles”, relembra.
Apesar de ser cardiologista, Siegmar precisou atuar em todas as áreas durante aqueles dias, já que no hospital não havia muitos médicos e enfermeiras atuando com ele. Ele diz que toda a experiência foi muito traumática, e lembra de ouvir gritos de vizinhos pedindo por ajuda em cima dos telhados. Até hoje o barulho de um helicóptero traz memórias pouco felizes, já que eles foram muito frequentes durante as enchentes.
[soundcloud url=”https://api.soundcloud.com/tracks/1694739789″ params=”color=#ff5500&auto_play=false&hide_related=false&show_comments=true&show_user=true&show_reposts=false&show_teaser=true” width=”100%” height=”166″ iframe=”true” /]A realidade do anestesiologista Josemar não foi muito diferente. Natural de Goiânia, quando chegou na cidade tinha noção dos desastres que por aqui eram recorrentes, mas não imaginava que um dia sairia para um plantão e só voltaria para casa 13 dias depois.
Durante o período que ficou no Hospital Santo Antônio, o médico teve que exercer funções de marceneiro, cozinheiro, auxiliar de limpeza e, assim como Siegmar, coveiro. Conforme os dias passavam dentro do hospital, as dificuldades aumentavam. Não havia abastecimento de água, nem energia elétrica e, da mesma forma que no Hospital Santa Catarina, diversos pacientes morreram durante aqueles dias, por falta de recursos.
“Chegamos em um ponto em que já estávamos acostumados com aquelas cenas de mortes, não tínhamos tempo para parar e lamentar sobre o que poderíamos ter feito diferente”, expõe.
Além disso, com as chuvas constantes, o solo base para o Hospital Santo Antônio acabou cedendo após ficar muito encharcado, e isso fez com que tudo tivesse que ser realocado para outro espaço de maneira rápida, para que não houvesse ainda mais perdas.
A atuação de Josemar foi importante durante a época, e ele chegou a receber um capítulo próprio no livro publica- do em 2010, nomeado como “Livro Hospital Santo Antônio: 150 anos de História”. Agora aposentado, ele ainda lembra de tudo que enfrentou.

“Nós não tínhamos essa complexidade de UTIs, dos geradores que temos agora, não havia mobilidade porque muitas ruas estavam alagadas, não existiam centros cirúrgicos pela falta de recursos. Me recordo de estar levando um paciente de barco, com ele entubado, e as ruas estarem tão cheias que era possível encostar com a mão nas sinaleiras do centro. Nesses momentos, não há rico e não há pobre, todos enfrentam as mesmas
perdas e dificuldades”, afirma.
Memórias aterradas
“Estávamos chegando da Oktoberfest quando percebemos o que havia acontecido durante aquela noite. No terminal do Garcia, dava para ver os corpos das pessoas soterrados, cobertos de lama, assim como as ruas. Perto de nossa casa, vimos uma mulher com a filha nos braços, gritando ‘ela está viva, ela está viva’, mas quem via de fora percebia que ela já não estava mais respirando e estava pálida”, lembra Ivete Mueller, atualmente com 56 anos.
Nos dias de hoje, sempre que usa um traje típico alemão da Oktoberfest, ela relembra o que presenciou no dia 14 de outubro de 1990, quando uma grande enxurrada deixou o bairro Garcia destruído e tirou a vida de 21 pessoas.
Esse não foi o primeiro, nem o segundo desastre natural a deixar marcas na cidade. Os anos de 1852, 1983, 1984, 2008 e 2011 são apenas alguns quando as águas do rio Itajaí-Açu subiram muito acima do normal e provocaram prejuízos e muitas mortes. Segundo os registros históricos da cidade, não há estatísticas oficiais, nem dados consolidados de quantas pessoas já foram afetadas ou quantas vidas foram perdidas durante todos esses desastres. Mas ainda há pessoas que seguem desaparecidas até os dias atuais.

Gilmar de Souza era fotógrafo do Jornal de Santa Catarina. Paulo César era radialista na Rádio Clube e Moacyr Lopes havia vindo de São Paulo para cobrir tudo que estava acontecendo em Blumenau. Juntos, os três foram os poucos a terem registros e contato com um dos deslizamentos mais marcantes da história da
cidade, em 2008.
Era 24 de outubro. A chuva não dava trégua e a população ficava cada vez mais assustada, quando o morro do cemitério municipal do bairro Progresso desmoronou. Segundo os relatos dos moradores, quem passava pela região conseguia ver lama misturada com o material dos caixões e, em meio a tudo isso, corpos e ossadas. Diversos corpos de pessoas enterradas recentemente, que antes estavam cobertos e embaixo da terra, agora estavam a céu aberto.
Como a comunicação do período estava afetada, assim como diversos serviços, a notícia foi chegando em partes aos diversos meios de comunicação ativos da cidade. Em 28 de novembro de 2008, o jornalista José Eduardo Rondon e o fotojornalista Moacyr Lopes Júnior, da Folha de São Paulo, testemunharam o que os vizinhos do cemitério comparavam a um cenário de guerra.
Em uma das reportagens publicada no jornal, eles contam que, ao entrar no cemitério, encontraram e entrevistaram o consultor técnico Marcos Fernandes, na época com 38 anos. Quando soube do desmoronamento, foi até o local para localizar os túmulos da mãe e da avó, mas só conseguiu encontrar aquele onde estava sepultada a sua mãe. A equipe de reportagem também viu, no bairro inteiro, pessoas que carregavam o que podiam das casas que haviam perdido.
Moacyr Lopes, na época com 40 anos e já com muita experiência, relata que em toda a cobertura, encontrou muitas histórias dolorosas.
“Eu ajudei a enterrar um corpo”
A mesma situação, em que caixões foram desenterrados pela enchente, aconteceu com um dos poucos fotógrafos do Jornal de Santa Catarina, da época. Gilmar de Souza conta que chegou na redação em um momento quando não se sabia o que estava acontecendo. Segundo ele, a prefeitura de Blumenau, o Corpo de Bombeiros e nem a Defesa Civil entendiam ou davam conta de tudo que estava acontecendo.
Por conta disso, ele saiu andando pela cidade sem rumo, apenas registrando o que via. Naquele dia, precisou dormir na redação do jornal. No dia seguinte, quando acordou, ficou sabendo da história de uma família que precisou enterrar o pai e marido no quintal da própria casa.

Com essas informações, ele e um repórter se deslocaram até o local. Foi só no caminho que passaram a ter noção do que estava acontecendo. E foi durante esse trajeto que presenciou a tragédia do cemitério do Progresso. “Por onde passávamos víamos deslizamentos, foi quando decidi olhar para cima. E então eu vi. Tinha um caixão pendurado, e diversos outros destruídos e corpos expostos”, relembra.
A foto que Gilmar tirou na época é um dos pouquíssimos registros guardados que ainda existem nos arquivos de Blumenau sobre o acontecimento. Não houve muito tempo para acompanhar a situação, e logo os dois seguiram para a pauta que precisavam cobrir. O fotojornalista conta que, como as estradas estavam todas afetadas, os dois conseguiram chegar no local só oito horas depois de sair da redação.
“Quando chegamos no local, a mulher veio correndo nos abraçar. Contou que o homem havia falecido no dia anterior, em um córrego na parte de trás da casa. Ela chorava muito e contou que não aguentava mais ver o marido no quintal. Naquele dia ajudei a enterrar o corpo. Depois soube que ele foi levado para Joinville, para ser enterrado de forma digna. A emoção daquele dia foi grande”, relata. Para Gilmar, aquela cobertura foi um dos trabalhos mais importantes da carreira, e mesmo já tendo muita experiência, aprendeu muito com
tudo que viveu.
Apesar de o jornalista Paulo Cesar não ter presenciado pessoalmente a queda dos caixões, foi um dos primeiros a ter contato com o acontecimento. Locutor na Rádio Clube, que por conta do desastre, fazia parceria com a Rádio Nereu, ele recebeu informações dos deslizamentos quase no momento em que tudo acontecia.
Durante 10 dias, o jornalista ficou ilhado na redação das rádios, sem uma muda de roupa e de forma precária, já que não havia passagem para sua casa. Em conjunto com o cientista social e pesquisador histórico Adalberto Day, que morava em frente ao cemitério quando tudo aconteceu, os dois noticiaram os acontecimentos quase ao vivo.
Nas gravações da época, é possível perceber a voz de susto do pesquisador. No áudio, ele relatava estar em choque com a situação e que, mesmo em anos de experiência e já tendo visto muita coisa, ficou surpreso com tudo. “Essa tragédia é violenta, nunca vi nada igual, nem mesmo comparada com as outras grandes que aconteceram no século passado. Nós vimos quando caiu, estamos apavorados”, disse Adalberto, durante a cobertura do deslizamento.
Por Iáscara Zultanski