Nascimentos durante enchentes enfrentam ainda dificuldades causadas pelo deslocamento
Em julho de 1983, as ruas de Blumenau haviam sido tomadas pelas águas do Itajaí-Açu. Era praticamente impossível transitar pela cidade. Botes e canoas resgatavam pessoas e levavam mantimentos para quem estava isolado. O nível do rio subia e a chuva não dava trégua. A população estava apreensiva.

No bairro Itoupava Norte, a moradora de Blumenau, Maria Teresa Hülse, acompanhava o nível das águas que não paravam de subir. Grávida do primeiro filho, começou a sentir que o pequeno Levy estava para chegar justamente no dia 9, quando o Itajaí-Açu alcançou a marca de 15,34 metros de altura, a maior daquela enchente.
Chegar ao hospital era praticamente impossível. O tempo estava fechado, a chuva era intensa e as dores iam aumentando minuto a minuto. Era ainda escuro, entre 5h e 6h da manhã, quando o marido de dona Maria Teresa saiu para buscar ajuda. Na rua 4 de Fevereiro, onde moravam, ele encontrou o senhor chamado Schrubbe, que era radioamador. Logo ele pegou o aparelho e se comunicou pelas ondas do rádio, explicou a situação e pediu auxílio a outros colegas radioamadores.
Foi então que dona Alda, também radioamadora, respondeu e transmitiu a informação para o Exército. As vozes amigas que ecoavam pelo rádio levando informações sobre a enchente, sobre as pessoas e suas necessidades, foi responsável pela primeira grande aventura do pequeno Levy, que chegou ao mundo pelos ares de uma cidade que mais parecia um grande lago.
A ajuda, veio dos céus. “Fomos de helicóptero para o Hospital Santa Catarina, para que meu filho pudesse nascer. Foi só eu, ele e Deus”, relembra Maria, ao remexer nas antigas memórias. Se não fosse a ajuda pelo ar, Maria Teresa diz que não havia o que fazer.
O então comandante do Grupo de Serviços de Base, da Base Aérea de Santa Maria (RS), Sérgio Pedro Bambini, coordenou as operações de resgate durante a enchente e enfrentou condições climáticas extremamente desafiadoras. “Navegamos literalmente sobre as águas do rio (Itajaí-Açu) obedecendo todas as curvas, enfrentando baixa visibilidade e velocidade reduzida”, recorda.
Lembranças de solidariedade
As memórias do caos e da incerteza da época ainda ecoam, mas também persistem as lembranças da solidariedade demonstrada pela comunidade. Vizinhos e voluntários se uniram, fornecendo roupas, fraldas e suprimentos essenciais para o recém-nascido em meio às condições precárias. “Depois de três dias, fui para a casa do meu pai e todos os vizinhos ajudaram com roupa, fralda, talco, tudo que pudessem naquele momento atender as necessidades do meu filho”, lembra Maria Teresa.
As operações de resgate e assistência coordenadas pelas autoridades e voluntários refletem a determinação incansável da comunidade em proteger e ajudar uns aos outros. “Nosso objetivo principal era resgatar o maior número possível de pessoas e prestar socorro imediato às vítimas, mesmo sob condições extremas”, ressalta o ex-comandante do Grupo de Serviços de Base.

Atendimentos exigem cuidado
A história do nascimento de Levy Hülse não é a única com o enredo de um nascimento em plena época de enchente. De acordo com Carlos Ivan Beduschi, que atuou como obstetra na enchente de 2008, em Blumenau, realizar esse tipo de atendimento em ocasiões como estas exige muito cuidado.
“O quadro de atendimento de gestantes durante o período de desastres naturais se torna caótico, pois o acesso ao hospital fica muito dificultado, então muitas mulheres deram à luz nos abrigos ou no translado para o hospital. Como a obstetrícia é uma especialidade muito particular, os trabalhos de parto complicados e as complicações do período gestacional tornam-se emergências neste contexto”, explica.
Sabendo da dificuldade de realizar os trabalhos de parto enquanto a cidade está em situação de enchente, os médicos pensaram em mecanismos para realizar os atendimentos com segurança: “Notei que os médicos obstetras se desdobraram para poderem estar em pontos estratégicos, e principalmente dar o primeiro atendimento, e se precisar, acompanhar a gestante até o hospital, seja de barco, carro ou helicóptero”, aponta.
Solidariedade aquece o coração e dá ânimo para recomeçar
O ano de 2008 marcou negativamente a região do Vale do Itajaí pelos desastres que aconteceram na região, mas também fez aflorar mais uma vez a solidariedade, na forma de doações que ajudaram a reconstruir as vidas afetadas pela catástrofe.
“Ganhamos uma pia, um armário e uma mesa com seis cadeiras. Como perdemos várias coisas, isso impactou positivamente, nos fornecendo um sentimento de esperança para reconquistar novos móveis e novos alimentos”, desabafa a moradora de Blumenau, Tatiana Manuela.
A solidariedade desempenhou um papel vital na recuperação da comunidade após a tragédia, proporcionando não apenas recursos materiais, mas também um senso renovado de esperança e confiança no futuro.
Em outubro de 2023, após as cheias atingirem o Vale do Itajaí novamente, a solidariedade veio mais uma vez dos céus. O helicóptero Bell 407, da Polícia Federal, com uma equipe de quatro tripulantes, desempenhou um papel crucial em operações de resgate e assistência.
Durante os dez dias de missão, a aeronave realizou 52 decolagens, totalizando 39 horas de voo. O helicóptero transportou 79 pessoas, incluindo enfermeiros e técnicos de prefeituras ou Defesa Civil. Além disso, foram entregues cerca de três toneladas de alimentos, 2 mil litros de água e aproximadamente R$ 5 milhões em medicamentos aos desabrigados.
De barco, bombeiros ajudam gestante a chegar no hospital
Nas enchentes de outubro e novembro de 2023, o baixo efetivo do grupo do Corpo de Bombeiros Voluntários de Lontras, municípios do Alto Vale do Itajaí, fez o comandante Silvio Faustino, solicitar reforços aos comandantes de cidades vizinhas.

Não demorou muito e bombeiros voluntários de Vitor Meirelles, Ibirama e Pomerode já estavam em Lontras. “Como somos unidos, sempre que houver necessidade de apoio, alguma corporação este auxílio. Da mesma forma, o Corpo de Bombeiros de Lontras apoia as outras equipes quando houver necessidade”, comenta Silvio.
Durante a operação de resgates, uma das moradoras ilhadas no município entrou em trabalho de parto. “Rapidamente foi entrado em contato com o comandante Carlos Hein, de Pomerode, para se deslocar ao local, juntamente com minha equipe. Junto com o grupo, um enfermeiro foi até o local, onde ele tomou a decisão de remover a gestante para uma unidade intra-hospitalar”, detalha o comandante Silvio.
Para chegar até o local do atendimento, foi preciso usar uma embarcação. A moradora, que estava na quinta gestação, dizia que as contrações estavam ocorrendo em um intervalo cada vez menor. A preocupação era grande, porque o bebê poderia nascer durante o caminho para o hospital, em um barco.
Próximo das 5h, a paciente e a equipe conseguiram chegar até a ambulância do Samu, que os levou até o hospital de Ibirama. Cerca de 15 minutos depois da chegada, o parto foi realizado com sucesso.
De acordo com o comandante Hein, realizar o parto durante o resgate, em todos os casos, deve ser feito apenas quando não for possível chegar ao hospital. “O parto emergencial, fora do ambiente hospitalar, é a última opção, sendo realizado somente se for iminente. Neste caso, o ambiente era ainda mais extremo, pois o parto poderia ocorrer durante o transporte, em meio às áreas afetadas, exigindo mais precauções para que houvesse condições mínimas de prestar os cuidados à mãe a ao recém-nascido”, relata.
Por Gabriel Menezes e Miguel Bruch