Depois da inundação histórica de 1983, as marcas do passado ainda permanecem na memória 40 anos depois
Em julho de 1983, Blumenau enfrentou a maior enchente já registrada no Vale do Itajaí. No entanto, as enchentes já começaram em março, atingindo 10,60 metros, seguidas por outras em maio com 12,52 metros. O ápice ocorreu em 9 de julho, quando o rio Itajaí-Açu atingindo 15,34 metros.
Segundo a Defesa Civil de Blumenau, nos períodos de normalidade ou com chuva fraca e pontual, a altura do rio Itajaí-Açu fica em torno de um metro. Quando atinge quatro metros de altura, o município entra em estado de atenção. Abaixo dessa altura, considera-se situação de normalidade.

Edite e Orlando Georg viveram, em julho de 1983, um período de que normalidade não tinha nada. Ambos atualmente com 75 anos, o casal conta que perdeu tudo o que tinha em casa, na época localizada na rua 7 de Maio, no bairro Itoupava Norte. “A enchente de 1983 pegou todo mundo de surpresa, porque ela veio de madrugada. Então teve pouco tempo para a gente salvar alguma coisa. Nós praticamente naquele dia, não dormimos nada. Tentamos levantar tudo o que tinha, o que estava mais baixo colocamos em cima no sótão da casa”, lembra Orlando.
O casal conta que haviam se mudado em dezembro de 1982 e, em julho de 1983, a enchente veio e levou tudo o que eles tinham. “A nossa casa ficou praticamente inundada, só o telhado da casa de fora. A parte de cima não molhou, mas, mesmo assim, o que tinha dentro de casa, nós perdemos tudo”, recorda Orlando.
Edite comenta que, logo após, recebeu auxílio de um tio de Brusque, que soube do ocorrido e os ajudou durante duas semanas na limpeza da casa. Donos do Comércio de Móveis Georg, empresa ativa até 1987, Edite e Orlando contam que os representantes onde compravam os móveis para venderem foram muito compreensivos e os auxiliaram a reerguer a empresa e voltar a trabalhar.
Falsa segurança
No centro da cidade de Blumenau, a experiência de Liete Poerner Broering foi devastadora. Atualmente com 77 anos, ela conta que na época morava no início da rua Max Huscher, no bairro Vila Formosa. Ao perceber a possibilidade de alagamento nas ruas próximas ao centro, foi buscar a mãe, Liliosa Maria Poerner, que na época tinha 65 anos e morava no bairro Jardim Blumenau. Como a Vila Formosa não é afetada pelas enchentes, ela pensou que lá estariam seguras.
“Era meio-dia. Ela almoçou e foi se deitar. De repente, vejo casas na frente do prédio, umas desabando, outras sendo soterradas. Foi terrível quando vi uma piscina voar inteira morro abaixo, junto com casas, árvores. Minha mãe acordou com os estrondos. Na intenção de sair correndo de lá, foi impedida, devido ao impacto do desbarrancamento. O portão eletrônico do prédio travou e não abria”, lembra.
Liete recebeu auxílio de alguns senhores, que se prontificaram a ajudar os moradores a subirem pelas grades do portão. “Eles formavam escadinhas. As pessoas iam subindo e pulavam a grade de três metros de altura, mas ao descer caiam dentro da lama”, explica.
As duas tiveram que caminhar com lama até a cintura para sair do prédio e passaram duas horas no topo do morro que divide a Alameda Rio Branco com a rua Hermann Huscher. Depois disso, um morador da região, cuja casa não tinha sido atingida, as levou para tomar um banho e ligou para o filho de Liete, Arturo Broering relatando o ocorrido. Ele as buscou, atravessando a água com um Jeep e as deixou em uma casa de familiares, onde estavam seguras.
Após três dias quando as águas já haviam baixado, Liete conta que foi até o antigo Banco do Estado de Santa Catarina (Besc) para fazer um saque. Ela precisava pagar prestadores de limpeza que estavam trabalhando em um imóvel da família que, após o desastre, ficou muito sujo de lama.
De volta ao apartamento, o portão ainda não havia sido consertado e o prédio seguia sem energia. Entrando pela garagem, logo atrás dela veio um motociclista, que ela acreditava ser um vizinho. Mas não, era um assaltante que a seguiu desde o banco e, ameaçando-a com uma faca, pediu o dinheiro. Todos esses episódios deixaram marcas profundas na sua memória. “Até hoje não consegui voltar mais a morar no edifício. As lembranças marcaram profundamente a minha vida”, conta.
Apesar das dificuldades, ela não se esquece da união entre as pessoas durante e após as tragédias. Para ela, Blumenau sempre foi uma cidade solidária. Aqueles que não foram atingidos pela enchente estenderam o seu ombro amigo e a compreensão foi um fator dominante.

Na época, ela trabalhava como diretora da 4ª Unidade de Coordenação Regional de Educação (Ucre), que foi atingida pela lama da enchente até o segundo andar. O prédio armazenava toda a merenda escolar de 11 municípios e todos os alimentos ficaram dez dias debaixo da água. Tudo estragou e um forte odor de comida em decomposição permaneceu no edifício.
Mas talvez a imagem que mais a marcou na tragédia foi o esforço de toda a comunidade para reerguer a Unidade. Mesmo quem não foi atingido pelas cheias auxiliou com pás, carrinho de mão, mangueira e material de limpeza em um clima de muito harmonia, deixando o local de trabalho totalmente limpo para seguir em frente.
Um novo sentimento
Ao mesmo tempo que as águas traziam perdas e sofrimentos, a situação de calamidade também fez aflorar o sentimento de solidariedade e de ajuda, características que acompanham a cidade e todo o Vale do Itajaí até hoje.
É o caso de Rita Heidorn, 78 anos. Ela conta que, durante as cheias de 1983, auxiliava as pessoas distribuindo produtos de higiene. A entrega era feita de canoa, na rua João Pessoa. Na época, ela morava na rua Araras, no bairro da Velha, aos fundos da rua João Pessoa, uma região que, segundo ela, foi muito atingida pela enchente de 1983.
Rita conta que o momento mais marcante nesse desastre, foi uma situação que passou com seus tios. “Eles ficaram presos em um sótão porque o rio encheu muito rápido. Fui de canoa até a casa, pela janela da cozinha, eu e os mantimentos necessários”, relembra.
Mais de 30 dias ilhado na prefeitura
Prefeito de Blumenau em 1983, Dalto dos Reis passou 32 dias ilhado no prédio da prefeitura, durante a enchente de julho daquele ano. Em entrevista realizada em 2022 por estudantes do curso de Jornalismo da Furb, Dalto relembrou detalhes daqueles dias.
“Foram 32 dias que eu jamais esquecerei na minha vida. Aqueles que perderam suas casas, rumavam em direção à prefeitura e, em determinado momento, logo no segundo dia da enchente, talvez nós estivéssemos ali dentro do prédio da prefeitura com mais de mil pessoas”, recorda.
O ex-prefeito relata que, após o desastre, foi até a Alemanha em busca de recursos para auxiliar famílias que perderam as casas. “Eu afirmei nesta reunião para as quatro entidades, que todo o dinheiro que eventualmente fizessem doação, nós não aplicaríamos em obras públicas, e sim na reconstrução de casas populares perdidas por blumenauenses que estavam em desabrigo. Eles ajudaram por inteiro na reconstrução de 1200 casas”, conta.
A situação em Blumenau era caótica e não existia um órgão estruturado para atuar no enfrentamento a desastres, como a Defesa Civil, que seria criada no município apenas em 1989.
Para tentar atender a população, o 23º Batalhão de Infantaria foi transformado em um centro de operações para ajuda humanitária. “O pátio do 23º Batalhão se transformou em um heliponto onde vários helicópteros se revezavam na carga e descarga de mantimentos como água potável, colchões, roupas, etc.”, conta Adilson Roberto Elísio, que em 1983 servia no 23º BI como cabo.
Ele recorda que muitas pessoas foram para o alto dos morros para fugir da enchente. Isolados e sem alimentos, dependiam dos voos dos helicópteros, que jogavam caixas de mantimentos para a população isolada.
Cabo Elísio conta que várias equipes foram montadas e comandadas pelos cabos e sargentos, que se revezavam 24 horas por dia durante toda a enchente. Ele lembra que a cidade estava sem energia elétrica e sem telefone porque os fios de eletricidade e de telefonia haviam sido levados pela força das águas. Por isso, durante os 35 dias da enchente, ninguém recebia notícias de familiares, pois não existiam meios de comunicação em funcionamento. “Nossos familiares não sabiam se estávamos vivos”, afirma. Apenas alguns radioamadores da cidade conseguiam se comunicar com outros radioamadores e transmitir informações.
“Muitas pessoas morreram nos leitos dos hospitais por falta de energia elétrica, pois não tinha como acionar os aparelhos. Nos fundos do Hospital Santa Isabel foi criado um cemitério improvisado onde as pessoas eram enterradas. Tristes episódios ficaram marcados em minha memória até hoje”, relembra.
Ele conta que foram dias de muita angústia e cansaço, não apenas físico, mas também mental. Nos patrulhamentos que eram feitos com botes pela cidade, muitas pessoas foram encontradas, à noite, isoladas no telhado das casas, desesperadas, sem alimentos ou água. Elísio também relata que foi necessário intervir algumas vezes durante a madrugada para evitar que supermercados fossem saqueados.
E depois de todo o trabalho que durou mais de um mês, o retorno para Indaial, onde morava, teve que ser feito a pé, caminhando pela região do Encano. Com estradas e pontes destruídas, essa foi a saída para voltar para casa, juntamente com outros cinco soldados de Timbó e Indaial.
Lições mudaram atitudes
Após a enchente de 1983, Blumenau e o Vale do Itajaí voltaram a sofrer com a força das águas. Algumas medidas foram tomadas ao longo dos anos, como a criação da Defesa Civil, em 1989, além do Grupo de Ações Coordenadas (Grac), que colaboraram para diminuir os impactos de desastres naturais em Blumenau.
“Costumo dizer que cada enchente ou episódio nos ensina de uma forma. A enchente de 1983 fez com que a cidade olhasse com mais atenção para o rio, aprimorasse o trabalho da Defesa Civil e a questão do monitoramento”, destaca Mário Hildebrandt, atual prefeito de Blumenau.
Atualmente Blumenau está mais bem preparada para enfrentar esse tipo de fenômeno. A construção de diques foi uma delas. Ao todo são cinco dessas estruturas na cidade: três no bairro Itoupava Norte, um no Vorstadt e outro na Itoupava Seca. Esses dispositivos têm a função de evitar que as águas elevadas do Itajaí-Açu entrem em alguns ribeirões e alaguem partes da cidade, mas também fazem com que a água desses mananciais seja retirada, por meio de bombas, e jogada no rio Itajaí-Açu.
A cidade possui um Plano de Contingência, que é acionado cada vez que um evento natural acontece. Nesse documento estão todas as ações que o município precisa fazer em tempos de crise, como a abertura de abrigos provisórios, por exemplo.
Dois programas chamados “Agentes Mirins de Defesa Civil” e “Defesa Civil na Escola” atuam diretamente em comunidades e escolas do município. Esses programas servem para educar a população sobre o que são enchentes, inundações e deslizamentos, além de capacitar os cidadãos para que saibam atuar em casos de necessidade. “Costumo dizer que quem não preserva seu passado, também não constrói seu futuro e manter viva na história da cidade esses eventos é preservar o passado para seguir construindo o futuro”, enfatiza Hildebrandt.
Dentre os desafios para o futuro estão o enfrentamento das mudanças climáticas, a conscientização sobre áreas de risco e a não ocupação irregular desses locais. Apesar do monitoramento constante, prever deslizamentos é uma atividade complexa. Por isso, evitar ocupações em áreas de risco é fundamental.
Para o prefeito, a implementação do projeto que contém medidas de prevenção e mitigação de desastres para a bacia do rio Itajaí-açu, elaborado pela Agência Japonesa de Cooperação Internacional (Jica), discutido há anos em Santa Catarina, poderia evitar inundações graves na região.
Por Maria Bendini